Pesquisadores da Unesp e colaboradores avaliaram 50 jovens com média de idade entre 26 e 27 anos. Objetivo foi encontrar biomarcadores que possibilitem a detecção precoce de alterações na saúde
(Foto: Agência Brasil)
É cada vez maior o número de adeptos dos cigarros eletrônicos, também chamados de vapes: estima-se que ao menos 20% dos jovens adultos brasileiros já tenham usado ao menos uma vez esses aparelhos inicialmente desenvolvidos com o objetivo de facilitar a cessação do tabagismo. Mas as pesquisas científicas têm demonstrado justamente o contrário. Esses dispositivos não ajudam a parar de fumar e ainda aumentam significativamente a dependência de nicotina, além de causar outros danos à saúde.
Atualmente, sabe-se que o cigarro eletrônico pode gerar lesões agudas nos pulmões e está associado a doenças e riscos similares aos do cigarro comum, como asma, DPOC (doença pulmonar obstrutiva crônica) e enfisema pulmonar, além de poder causar alterações nos vasos sanguíneos, aumentando o risco cardiovascular. Seus compostos também possuem substâncias cancerígenas.
Agora, um estudo realizado no Instituto de Ciência e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista (ICT-Unesp), com a colaboração de cientistas das universidades de São Paulo (USP) e de Santiago de Compostela, na Espanha, constatou que os vapes alteram a composição da saliva dos usuários, aumentando o risco de doenças bucais, como cáries, lesões da mucosa e doença periodontal.
Os resultados da pesquisa, apoiada pela FAPESP por meio de quatro projetos (20/10362-0, 20/10322-9, 22/16249-7 e 24/20063-1), foram publicados no International Journal of Molecular Sciences e compõem parte dos resultados obtidos durante o doutorado de Bruna Fernandes do Carmo Carvalho.
Para chegar à conclusão, os pesquisadores selecionaram 50 jovens sem alterações clínicas visíveis na mucosa oral, com média de idade entre 26 e 27 anos: 25 usuários regulares e exclusivos de cigarros eletrônicos há pelo menos seis meses e 25 não usuários para o grupo-controle. É importante ressaltar que, no Brasil, o consumo e a venda de cigarros eletrônicos são proibidos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) desde 2009 – daí a dificuldade de encontrar voluntários que concordassem em participar do estudo.
Todos forneceram amostras de saliva para serem feitas análises que incluíram a sialiometria (avaliação da saliva), viscosidade, pH e concentrações de cotinina – um importante biomarcador relacionado à exposição à nicotina. Altas doses dessa substância na saliva, urina ou sangue estão associadas a maiores níveis de dependência. Os voluntários também passaram por análises clínicas, que mediram a frequência cardíaca, a oximetria, a glicemia, a concentração do monóxido de carbono (CO) no ar exalado e o uso de álcool.
Após a análise da saliva, os pesquisadores constataram alta concentração de cotinina entre os usuários de cigarros eletrônicos. Eles também identificaram a presença de 342 metabólitos salivares (compostos resultantes do metabolismo de substâncias na saliva), mas foram considerados para a análise apenas aqueles encontrados em pelo menos 70% das amostras.
Do total, 101 metabólitos foram incluídos no estudo: 61 eram exclusivos do grupo de usuários, enquanto 40 compostos eram compartilhados entre os dois grupos. A partir de então, sete biomarcadores promissores foram identificados: quatro se mostraram específicos e aumentaram no grupo que usa cigarros eletrônicos (ácido esteárico, ácido elaídico, valina e ácido 3-fenilático) e três foram compartilhados entre os grupos (galactitol, glicerol 2-fosfato e glucono-1,5-lactona).
“A identificação desses metabólitos é importante porque eles podem se tornar potenciais biomarcadores para a detecção precoce de alterações de saúde. Ainda não temos bem estabelecido na literatura científica qual é o impacto dessa alteração na saúde, mas sabemos que está relacionado a questões inflamatórias, metabolismo de substâncias químicas estranhas ao corpo [como drogas ou toxinas] e aos efeitos da queima de biomassa”, explica a cirurgiã-dentista Janete Dias Almeida, professora titular do Departamento de Biociências e Diagnóstico Bucal da Unesp e coordenadora do estudo. Isso significa que vias inflamatórias específicas ligadas à doença periodontal, por exemplo, podem ser induzidas por cigarros eletrônicos.
Os resultados dessas análises foram apresentados durante o 17º Congresso da Sociedad Española de Medicina (Semo) e a 18ª Reunião da Academia Iberoamericana de Patología y Medicina Bucal (AIPMB), realizados em Santiago de Compostela, na Espanha, em 2023, tendo recebido menção honrosa.
Baixo fluxo salivar e maior nível de CO
O estudo constatou ainda que o fluxo salivar dos usuários de cigarros eletrônicos apresentou tendência à diminuição em relação ao grupo-controle, o que pode estar associado à presença de substâncias como propilenoglicol e glicerina nos aromatizantes – essas substâncias irritam as vias aéreas superiores e causam ressecamento das mucosas.
Os resultados também indicaram baixa viscosidade da saliva daqueles que usavam vapes, sendo que essa característica desempenha um papel crucial na proteção e hidratação da mucosa bucal. “A redução do fluxo salivar favorece a formação de biofilme, que é a película que se forma quando não fazemos a higiene adequada dos dentes, favorecendo o surgimento de doenças relacionadas à boca, como as lesões de cárie”, alerta a professora.
No exame físico, os usuários de vapes apresentaram maior nível de monóxido de carbono exalado e menor saturação de oxigênio do que o grupo-controle. “Esse dado é muito importante porque a redução da oximetria significa que há menos oxigênio carreado no sangue pelas hemoglobinas. E o aumento do monóxido de carbono exalado também é um parâmetro muito importante”, destaca.
Outra constatação dos pesquisadores é que os jovens que usavam cigarros eletrônicos relataram altas taxas de consumo de álcool: 76% dos participantes relataram uso concomitante dos dois produtos. Além disso, 52% declararam que o consumo de álcool aumentou sua frequência de uso de cigarros eletrônicos. Como é sabido, o consumo de bebidas alcoólicas e o tabagismo são fatores de risco para várias doenças, entre elas o câncer oral. “O álcool atua na membrana celular, deixando a mucosa mais permeável e suscetível à ação das substâncias nocivas”, diz Almeida.
Ainda segundo o estudo, apenas 24% dos participantes eram ex-fumantes de cigarro convencional; eles fumavam cigarros eletrônicos por pelo menos 2,13 anos (sendo que 52% usaram os dispositivos diariamente e 60% de sete a dez vezes por dia); os cigarros com sabores frutados/doces eram os mais consumidos, seguidos por sabores mentolados.
Por que analisar a saliva?
De acordo com Almeida, a saliva é um biofluido fundamental que mantém o equilíbrio oral. Entre as suas principais funções estão atuar como barreira protetora contra patógenos; iniciar o processo digestivo e neutralizar ácidos do metabolismo alimentar ou bacteriano, evitando a desmineralização dos dentes.
“A saliva é um protetor muito importante. E nós podemos avaliar muitos parâmetros relacionados a várias doenças por meio da saliva. Além disso, a coleta da amostra é um procedimento simples, não invasivo e de baixo custo. Assim, essa é uma técnica promissora para a identificação de biomarcadores salivares que possam indicar início de problemas”, explica a professora.
Na avaliação da pesquisadora, o futuro é bastante preocupante, especialmente quando se pensa em saúde pública e nos problemas que podem surgir em decorrência desse consumo.
“Esse estudo veio confirmar que os cigarros eletrônicos não são inócuos, não são inofensivos como a indústria quer vender. Os jovens tendem a usar esses dispositivos cada vez mais cedo e o grande problema é que esses aparelhos usam sais de nicotina que chegam muito mais rápido ao cérebro, causando uma dependência maior num tempo menor”, afirma. “Os aparelhos são coloridos, diversificados, possuem um sabor agradável. Tudo feito para atrair o jovem. Vemos cada vez mais casos de infarto e AVC [acidente vascular cerebral] em pessoas mais jovens. O cenário é comprometedor”, reforça.