Triste realidade

‘Nós somos humanos, não parasitas sociais’

População em situação de rua cresceu 140,01% entre 2021 e 2024, cenário que é facilmente percebido ao andar por Manaus

Emile de Souza
politica@acritica.com
02/11/2024 às 09:19.
Atualizado em 02/11/2024 às 09:23

População em situação de rua enfrenta problemas de moradia, vícios, fome e falta de serviços básicos. Semasc diz que há opções para receber atendimento (Foto: Nilton Ricardo/Freelancer)

Tratadas durante o período eleitoral como um empecilho à recuperação econômica do Centro de Manaus devido à segurança pública, as pessoas em situação de rua ainda sofrem com a “invisibilidade” de suas próprias necessidades. Nos últimos anos, especialmente com a crise econômica provocada pela pandemia, ver famílias inteiras implorando por trabalho e comida tem se tornado cada vez mais comum nas ruas da capital amazonense.

De 2021 a maio de 2024, a população de rua no Amazonas deu um salto de 918 para 2.240 pessoas. Em percentuais, o aumento é de 144,01%. O dado é do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua (OBPopRua/UFMG). Segundo o estudo, quase a totalidade (2.010) delas vive em Manaus. Entre os principais fatores sociais que influenciam esse número estão questões financeiras, familiares e vícios.

“A gente vive na rua, mas ninguém aqui é parasita. Nós somos humanos e não parasitas sociais, tá entendendo? A gente está lavando um carro, a gente pode vender uma água. A gente faz funções por aqui”

, afirma o autônomo Isaac Reis, 41, que mora no Centro de Manaus e sobrevive de bicos. 

Embora consiga alguma renda, ele diz que acabou se adaptando à situação de vulnerabilidade na qual vive. Afirma ainda que, apesar de serem resilientes e exercerem profissões autônomas, falta atuação do poder público em assegurar serviços básicos a quem vive nas ruas.

Pessoas que se submetem à rua para procurar emprego também têm aumentado. (Foto: Jeiza Russo/A Crítica)

 “É meu estilo de vida já, uma forma que eu me adaptei de viver, de onde eu ressurjo. Mas em relação ao Estado, eu sei que minha situação aqui é diferente da de outras pessoas. Por exemplo, poderia ser colocado pelo menos um banheiro químico. E com certeza tem pessoas que gostariam de sair das ruas para morar em algum lugar”, destacou.

Emprego

A crise na cidade tem levado ao aumento de um outro perfil de pessoas em situação de rua. Aquelas que até têm um espaço para morar, geralmente em péssimas condições, mas passa a maior parte do tempo exposta ao sol, inclusive com crianças, para pedir ajuda financeira ou conseguir pequenos serviços.

É o caso do autônomo Dayvide Monteiro, 31, que costuma ficar com a esposa e o filho na avenida Darcy Vargas, na zona Centro-Sul, em frente a um dos principais shopping centers da cidade. À reportagem, ele afirmou que muitas famílias vão para as ruas pela dificuldade de emprego e acesso a serviços básicos.

“No meu caso, estou aqui em busca de emprego. Algumas pessoas ajudam com valores, outras me oferecem bico, que é como consigo manter minha família. Eu sei que muitos que ficam nas ruas é porque está tudo muito caro, nem é só o aluguel, mas tem gás, luz e é pior para quem tem crianças. Muitas pessoas até passam fome, sede, em busca de ajuda”, disse.

Vulnerabilidade

A vendedora de água Célia Oliveira, 48, integra uma parcela dessa população que recebe algum auxílio governamental, mas sente na pele que a ajuda não é suficiente para deixar a situação de vulnerabilidade.

“A razão de eu estar aqui é por falta de dinheiro para pagar o aluguel. Eu até recebo auxílio do governo federal, mas são 600 reais. Só o aluguel é 450. O governo precisa correr atrás de colocar essas pessoas, como eu, que estão na rua em algum local, e eu acredito que tenha dinheiro para isso”, afirmou Oliveira.

Célia Oliveira recebe Bolsa Família, mas valor é insuficiente para custear gastos. (Foto: Nilton Ricardo/Freelancer)

 Para o psicólogo social do Instituto Nacer, Aleson Macedo, que atua no projeto Girassol com pessoas em situação de rua, a explicação é que o Bolsa Família, sozinho, não é suficiente para custear as necessidades básicas de uma família.

“Na maioria das vezes, não é o suficiente para cobrir todos os custos que uma família necessita, por exemplo, pagamento de aluguel, gás, utensílios de uso pessoal (higienização, medicamento e até suplemento alimentar). Essas limitações fazem com que as pessoas procurem a rua como alternativa de moradia”, disse o psicólogo.

Macedo explicou que o projeto do qual ele participa realiza abordagens sociais pró-ativas, onde são identificadas as necessidades emergenciais e as pessoas são direcionadas aos serviços socioassistenciais.

“O objetivo é identificar violações de direitos, como trabalho infantil, exploração sexual, pessoas em situação de rua, uso abusivo de drogas, entre outros”, destacou o psicólogo.

Aleson Macedo criticou a falta de políticas públicas que sejam ativas e possam ajudar, de fato, essas pessoas. “As medidas do estado, infelizmente, ainda não são suficientes. Mesmo com suporte para ofertar alguns serviços, ainda não há equipamentos adequados, como abrigos, albergues e programas de habitação, que contemplem a grande parte dessa população. Cerca de 90% das pessoas em situação de rua têm dependência química; não há dispositivos públicos suficientes para atender a essa demanda social”, apontou Macedo.

Saiba mais

Atendimentos 

No ano passado, a Abordagem Social Girassol atendeu 2.153 pessoas durante 26 ações realizadas. Um fator que chama a atenção é que 521 pessoas realizaram higienização pessoal e receberam kits básicos, por não terem acesso a banheiros e espaços adequados na rua. Além disso, nesse mesmo período, foram feitas 130 identificações de usuários em situação de rua e nove ações contra o trabalho infantil.

Prato Cheio

À reportagem, a Secretaria de Estado da Assistência Social (Seas) afirmou que o acolhimento da população em situação de rua é realizado pela prefeitura, por meio da Semasc. A pasta destacou ainda o programa Prato Cheio, que fornece refeições vendidas a R$ 1 nos restaurantes populares, além de sopas distribuídas gratuitamente nas cozinhas. Na capital, são 18 unidades, sendo 13 restaurantes e 5 cozinhas. Os restaurantes funcionam de segunda a sexta-feira e as cozinhas de segunda a sábado.

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