Entrevista da Semana

‘Hospital municipal não é solução de todos os males’, diz secretária do CRM-AM

Em entrevista à A CRÍTICA, a 1ª secretária do Conselho Regional de Medicina (CRM-AM), Tatiane Aguiar, diz que a construção de um hospital municipal não pode ser vista como uma solução para os problemas do sistema público de saúde de Manaus

Waldick Júnior
waldick@acritica.com
22/09/2024 às 14:34.
Atualizado em 22/09/2024 às 14:34

(Foto: Jeiza Russo/A CRÍTICA)

Prometida por mais de um candidato à Prefeitura de Manaus na eleição deste ano, a criação de um hospital municipal não é a solução de todos os males da saúde dos manauaras. É o que defende a 1ª secretária do Conselho Regional de Medicina do Amazonas (CRM-AM), Tatiane Aguiar, que representou a dire- ção da entidade em entrevista para A CRÍTICA.

Para ela, a iniciativa de anunciar uma obra na saúde é boa para a campanha, mas o problema da cidade é mais complexo. Os hospitais lotados, como verificado pelo CRM-AM, poderiam ser desafogados com outras políticas. Por exemplo, ao tornar o trânsito menos mortal e combater as queimadas ilegais que geram fumaça tóxica. Leia a entrevista.

Manaus e outras cidades do Brasil têm estado com uma qualidade do ar moderada, ruim e péssima por causa da fumaça de queimadas. Que efeitos isso pode ter para a saúde da população e para o sistema público de saúde?

A poluição do ar, em geral, e agora nesse período de queimadas, tem um impacto muito grande na saúde. A saúde respiratória é comprometida, porque você tem partículas em suspensão com a queima, além de outros materiais tóxicos e um aumento da quantidade de monóxido de carbono. Então, para quem já tem algum tipo de problema respiratório, especialmente aquelas pessoas que têm alergia, que são atópicos, essa constituição de um ar mais poluído causa diretamente uma irritação nas vias respiratórias e sintomas relacionados, como tosse, falta de ar e secreção.

Então, pessoas que têm problemas respiratórios crônicos, asma, doença pulmonar obstrutiva crônica, cardiopatas, problemas cardíacos, eles também ficam mais sensíveis a essa irritação nas vias aéreas e podem desenvolver outros quadros, piorar a sua própria doença de base.

Em geral, os efeitos a longo prazo podem até ser maiores do que isso, porque você tem também materiais tóxicos nessa fumaça, como a queima de benzenos e outros produtos químicos que até podem, a longo prazo, causar outras doenças como câncer.

Por conta desse efeito da fumaça na saúde da população, pessoas que poderiam estar com uma doença respiratória ou cardíaca controlada acabam descompensando ou agudizando essa doença e isso gera uma procura maior para o sistema de saúde.

Especialistas avaliam que já estamos em uma crise de saúde. O alerta se estende ao fato de parte das consequências da fumaça só poder ser observada a longo prazo. Qual o papel do CRM nessa crise e o que tem feito?

O CRM tem um papel não ape- nas de fiscalizador da prática médica, mas também de educação continuada e de incentivar todos os médicos a estarem alerta aos problemas emergentes de saúde. Hoje nós temos uma atuação também nas redes, passando para os médicos os informes relacionados à poluição atmosférica, orientações diretamente à população, mas também à própria classe médica. A saúde não é um problema setorial. Qualquer problema relacionado a outros setores, como a economia e o social, também afetam a saúde. Agora a gente vê que o meio ambiente também é um deles. Vemos também na violência urbana, na violência do trânsito, que são outros agraves que impactam a saúde,

O Conselho consegue atuar junto aos médicos e à população de uma maneira educativa e preventiva. Agora, essa parte mais ampla, a gente precisa da união de esforços de toda a nossa sociedade, a parte política, essa conscientização, a política ambiental que a gente sabe que é bem complexa no nosso país.

(Foto: Jeiza Russo/A CRÍTICA) 

Em reportagem do ano passado, mostramos que algumas prefeituras do interior chegam a contratar médicos por mais de R$ 100 mil por mês, geralmente especialistas mais difíceis de encontrar, como anestesista. O contrato também ocorre via empresa terceirizada. O CRM acompanha isso? Está dentro da legalidade?

Nós temos uma situação, especialmente no nosso estado, que é o maior estado do Brasil, e diferentemente do que vem acontecendo nos estados que são mais centrais, nós ainda temos uma demografia médica bem diminuída em relação aos outros centros. A concentração de médicos, em geral, especialistas, é menor aqui no nosso estado do Amazonas e na região norte em geral. Então, apesar de a gente estar tendo uma abertura de escolas médicas e lançando mais profissionais ao mercado, algumas regiões ainda são escassas, especialmente o interior do Amazonas.

Por isso, algumas prefeituras fazem contratações e o atrativo para o médico ir para o interior, onde a gente tem também uma questão de infraestrutura mais fragilizada, é o salário. A gente sabe que tem essa questão do salário, a gente sabe também que tem muitas vezes contratações, principalmente em locais de fronteira de médicos de outros países que não necessariamente podem ter revalidado o diploma.

O CFM e o CRM acompanham essas contratações de duas formas. Através de denúncias e de fiscalizações ativas. O nosso setor de fiscalização atua não apenas na capital, mas também no interior. É claro que, por ser um estado na dimensão do nosso, a gente acaba não conseguindo acompanhar como deveria, como seria mais interessante essa fiscalização, especialmente no interior.

E o interior do estado tem várias características. A nossa medicina de especialidades se concentra muito mais na capital, em Manaus. Às vezes, acontece de você contratar um especialista para fazer um regime de plantão no interior por 15 dias. Fica um cirurgião junto com um anestesista e depois vai outra equipe para mais 15 dias.

Para fixar o especialista no interior é um pouco mais complicado, porque você não tem todo o aparato. A medicina hoje está muito tecnológica. Você precisa ter um aparato que não é apenas de médicos. O médico sozinho não faz uma medicina de ponta. Ele precisa de centro cirúrgico, de equipamentos, de equipamentos de diagnósticos que até mesmo na capital, às vezes, a gente tem uma certa dificuldade.

Mas essas contratações são legais da maneira como ocorrem, via terceirizada e com os valores indicados?

Não se impede, até mesmo pelo SUS. O SUS pode tratar de maneira complementar com os terceirizados, com a atividade privada em saúde. Não há problema, desde que seja de forma complementar.

O ideal, no SUS, é que você fixe servidores, seja da saúde ou de qualquer outra área. No entanto, essa parte da saúde, especificamente de fixar o médico no nosso interior, é complexa. O colega larga tudo que tem na capital, geralmente uma clientela, algumas facilidades. O cirurgião já tem o seu hospital que opera, a sua equipe, e ir para o interior que ele sabe que vai ter dificuldades, muitas vezes, até do local.

(Foto: Jeiza Russo/A CRÍTICA)

Em 2018, o governo do Amazonas e as prefeituras fizeram uma pactuação para dividir a gestão dos hospitais municipais. Hoje os prefeitos reclamam que essa divisão acabou pesando no orçamento das prefeituras, sempre menor. Um dos custos é justamente a contratação de médicos. Como você avalia essa divisão da gestão dos hospitais municipais?

Existe, pelo próprio SUS, uma tendência a se municipalizar a saúde. O município fica com determina- das funções que são da prefeitura. Então esse repasse acaba sendo feito para a prefeitura. Obviamen- te, a gente precisa ver qual é a si- tuação em cada local.

A tendência é você municipalizar mesmo. O município gere a atenção primária. O que é a atenção primária? É popularmente conhecido como as casinhas de saúde. Aquele médico da família. Isso tudo tem que ser municipalizado mesmo. O município tem que tomar conta dessa atenção primária e um pouco da atenção secundária, que já é uma atenção com especialistas, policlínicas, etc. Normalmente, ao estado, é a atenção secundária e terciária, que são os hospitais de especialidade, grandes centros para cirurgias mais complexas, neurocirurgias, ortopédicas, transplantes.

É claro que o Amazonas está na região Norte e a gente sabe que tem aqui municípios que basicamente são acessíveis apenas via fluvial. Imagina em uma situação dessa de crise climática deixar só os municípios tomando conta disso. Então, é muito mais complexo. Não é bem da alçada do conselho, mas é algo que precisa ser discutido nas esferas políticas.

Há alguns meses, o problema do atraso de salários e falta de insumos na rede pública de saúde estadual escalou a um novo nível. O governo fez um acordo para quitar as dívidas. No que cabe ao CRM, a instituição tem acompanhado e atuado?

Sim, o CRM tem o dever de fiscalizar e garantir as boas práticas médicas. E para isso, o CRM busca também garantir que a medicina esteja sendo exercida nos locais onde os médicos atuam, sejam terceirizados, servidores ou particulares. Então há, de fato, esse atraso. Uma boa parte da saúde é terceirizada, principalmente, em setores de urgência e emergência. A gente não vai entrar no mérito sobre se isso é bom ou mal, mas fato é que a nossa realidade, tanto na capital como no interior, é de ter esses contratos.

Isso já vem de outras gestões governamentais, mas explodiu no ano passado e o CRM foi informado pelas empresas médicas, porque os médicos e as empresas, em geral, não podem parar de oferecer o serviço, mesmo que estejam em atraso. Por quê? Porque é um serviço essencial. Então, eles avisam o CRM.

Nosso CRM do Amazonas ficou ciente disso. Os colegas encaminharam essa situação e, junto a isso, também relatos de precarização nesses atendimen- tos, devido à falta de insumo, superlotação, etc.

Esse é um cenário que ainda está posto?

Sim, pelo que nós estamos acompanhando, ainda existe atraso. Foi feito um acordo com o governo do estado, no ano passado, creio que em dezembro ou novembro, e o governo se comprometeu a repassar para os colegas de maneira parcelada. E, até então, o que nós temos conhecimento é que está havendo atraso nesses repasses.

Está havendo atraso nas parcelas acordadas anteriormente ou nos atuais pagamentos referentes ao mês trabalhado?

Em ambas as situações. É o que nós temos de acompanhamento. Para mais informações, é interessante conversar com um dos membros das empresas médicas, porque eles devem ter esse relatório. O CRM fica como um órgão observador da situação, para entender no que isso pode implicar para a saúde da popula- ção, principalmente, e para as condições de trabalho médico.

Muitos candidatos em Manaus têm falado em criar um hospital municipal em Manaus. Seria um ganho, de fato, para a cidade? É prioridade?

É interessante, mas o hospital, por si só, não é a solução de todos os males. Um hospital, quando abre, com certeza ficará lotado depois de um tempo. O Hospital 28 de Agosto era municipal e foi passado para a gestão estadual.

Isso é interessante, talvez, para desafogar os prontos-socorros, que são concentrados na capital, mas talvez não seja a solução. Obviamente, um serviço de saúde que seja da gestão municipal pode ajudar na transferência desses pacientes que estão em outras unidades, mas acho que é preciso ter uma visão mais ampla. A saúde passa por outros setores.

A gente tem uma política de trânsito inadequada, que é tão caótica na nossa cidade. Isso impacta na saúde. Não adianta você abrir vários hospitais para trauma, por exemplo, e continuar tendo uma engenharia de trânsito que predispõe os acidentes.

Claro que toda iniciativa de construir em nível de saúde gera um capital político, é bom para a campanha, mas talvez essa não seja a solução. A gente precisa sentar e olhar a cidade pelo todo, como a gente pode melhorar o nosso trânsito, a violência urbana, até mesmo combater as queimadas.

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