Declaração de Raif Matos de que ‘pior do que o estupro é o homicídio’ provocou a reação de outros vereadores
(Foto: Emile de Souza)
A declaração feita pelo vereador da extrema-direita, Raif Matos (PL), de que “pior do que o estupro é o homicídio, usada para defender o PL Antiaborto por Estupro da Câmara Federal foi duramente criticada durante a sessão plenária desta terça-feira (18) da Câmara Municipal de Manaus (CMM) pelos vereadores Rodrigo Guedes (PP), Marcelo Serafim (PSB) e professora Jacqueline (União).
Na tribuna da CMM, Raiff Matos, membro da bancada evangélica, declarou apoio ao Projeto de Lei 1904/24, do deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) que prevê 20 anos de detenção para vítimas de estupro que abortarem depois de 22 semanas de gestação, pena maior do que a que pode ser imputada ao estuprador que chega a 10 anos. E que na prática acaba inviabilizando a interrupção da gravidez de meninas e mulheres estupradas, o que hoje é permitido no Brasil.
“Pior do que o estupro é o homicídio”, disse Raiff, que completou: “e para finalizar minha fala, nós temos que endurecer a pena para estupradores e não matar as crianças, que nada tem a ver com isso”, ao defender que crianças e mulheres estupradas prosssigam com a gestação.
Rodrigo Guedes disse jamais apoiar o aborto para uma mulher que gestasse um filho dele e que é pai de uma menina, mas que o tema aborda diretamente sobre abuso sexual contra crianças e afirmou que a fala de Raiff é descabida, pois a lei ampara o aborto somente em situações de má formação e estupro.
“Eu discordo totalmente do seu discurso de dizer que ‘pior do que o estupro é o homicidio’. Eu sou cristão, mas o estado é laico”.
O vereador, farmacêutico e bioquímico, Marcelo Serafim (PSB), declarou que mesmo sendo católico devoto e radicalmente contra o aborto, não é possível defender esse projeto de lei, pois em sua experiência na área de saúde teve que atender crianças de 11 anos vítimas de violência sexual.
“Não sou favorável ao aborto, sou contra, mas como cristão, não podemos defender uma lei que penaliza a mãe e para o estuprador, tudo de boa”, disse o médico.
O parlamentar criticou a tentativa da Câmara dos Deputados de penalizar as vítimas com maior rigor do que o infrator.
“Esse projeto é de uma infelicidade sem tamanho. Você penalizar uma mulher de uma forma mais rígida do que um estuprador é algo que vossa excelência como cristão não pode defender”, criticou Serafim.
De acordo com o Fórum Nacional de Segurança Pública 2023, de 74.930 casos de estupro registrados no Brasil, 56.820 são crianças e 68,3% acontecem dentro de casa por alguém do ciclo familiar.
Uma das vereadoras da CMM, a professora Jacqueline (União), defendeu o direito das mulheres decidirem sobre a interrupção da gravidez.
“A única propriedade que a gente tem é o nosso corpo, e os homens não entendem isso, pois querem coisificar a mulher, para eles a mulher é um objeto”, afirmou a parlamentar.
A vereadora ressaltou, na tribuna, que o projeto é inconstitucional, mas que é uma debate necessário, pois os abortos acontecem diariamente em fundo de quintal, clínicas clandestinas e envolve muito dinheiro. Ela afirmou não ser a favor do aborto de forma pessoal, mas que, como parlamentar, a discussão se faz necessária.
“Dizer às mulheres que é uma lei que decide por elas, sem ao menos ter uma discussão, uma discussão menos religiosa e mais realista, a gente tá negando o direito das mulheres de escolher”, ressaltou Jacqueline Pinheiro.
A vereadora destacou que a sua defesa pelos direitos das mulheres e da criança é baseada em seus acompanhamentos na escola, onde ‘as vítimas preferem morrer do que serem estupradas’.
“A gente acompanha muitas meninas em escolas que se suicidaram, porque o pai ou padrasto abusou e a mãe para não perder o provedor ficou calada e ela pediu socorro na escola, mas quando a gente conseguiu acompanhá-la já era tarde demais, ela estava em um estado de sofrimento que preferiu se matar”, relatou a professora.
A parlamentar criticou a postura da bancada evangélica de decidir pensando em interesses pessoais e com base em um discurso ideológico.
“Vamos acabar com esse discurso de ideologia, esse discurso de ‘ah, porque o meu tema é família. E que família é essa que a minha família posso proteger e a do outro não? Quer dizer que a dor da filha do outro é normal que ela sinta? Só porque acredito nessa defesa biológica?”, perguntou a parlamentar.
A vereadora Yomara Lins (Podemos) contou que em sua atuação como pastora, acompanha muitos casos de abuso e que o estupro afeta as vítimas e que precisam de suporte, mas não é a favor do aborto.
“Mesmo vendo a dor de quem sofre o estupro, um mal não se paga com o outro”, declarou a vereadora.
O vereador e pastor evangélico Marcel Alexandre (PL) acusou a “extrema esquerda” de tirar o projeto de contexto e que não querem criminalizar as mulheres e pede penas mais rígidas aos estupradores.
Na verdade, o PL Antiaborto por Estupro tem sido contestado por amplos setores da sociedade, inclusive pelo Conselho Pleno da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que, nesta segunda-feira, aprovou um parecer definindo o projeto como inconstitucional, inconvencional, ilegal e atroz, degradante, retrógrado e persecutória a meninas e mulheres, e que a iniciativa ‘remonta à idade média’.
O vereador Roberto Sabino (Republicanos) prestou apoio a Raiff Matos e enfatizou que o compromisso deve ser firmado com a vida.
“Nós não aceitamos nem o estupro e nem o aborto. Nós lamentamos muito que o supremo tem legislado, enquanto a Câmara e o Senado têm se esquivado desses assuntos”
Em entrevista após a sessão plenária, Raiff Matos disse ao A Crítica que em caso de estupro de vulnerável as vítimas que descobrem de forma tardia devem seguir com a gestação e entregar o bebê para adoção.
“A gente não pode esquecer que existe a possibilidade de adotar, de botar essa criança para adoção”, argumentou o vereador.
Questionado sobre a celeridade do processo de adoção e se a gravidez indesejada pode gerar mais criminalidade, o vereador disse que não.
“Não se paga mal com mal, tem que respeitar a vida. Não é porque uma criança foi estuprada que tem que matar outra criança que está no ventre. Eu acho que uma criança sendo bem assistida pela igreja, com ajuda de família, com a ajuda de um tutor, é possível sim dar a vida a essa criança que não tem nada ver com essa dor”, disse Matos.
Somente no interior do Amazonas, 131 casos de estupro de vulnerável já foram registrados em 2024, sendo totalizados 291 em todo o estado, conforme dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP-AM). A delegada titular da Delegacia Especializada de Polícia de Tabatinga (DEP), a 1114 quilômetros de Manaus, Maria Beatriz Andrade, informou que dependendo da idade, as crianças têm dificuldade de identificar os casos de estupro.
“A depender da idade da vítima, a consciência a respeito da violência sofrida acaba sendo consideravelmente prejudicada. Há situações em que crianças em tenra idade (2, 3 anos) são vítimas desse crime, então o entendimento delas sobre a situação não é completo”, informou a delegada.
A autoridade policial ressaltou que as crianças com mais idade podem ter a compreensão do fato, mas que depende da forma que o abusador atua no psicológico da vítima.
“A depender do modus operandi utilizado para a sua prática, algumas dessas crianças são ludibriadas e levadas a crer que o crime perpetrado contra elas seria uma relação consentida, ou, por vezes, um relacionamento amoroso”, disse Beatriz Andrade.
A delegada informou que a maioria dos casos é praticada em contexto intrafamiliar, por pais, avós, tio e até mesmo pais e que podem acontecer quando estão sozinhos com as vítimas, mas as vezes pode acontecer com conhecimento da família.
“Esse fato, no entanto, não é regra e, é possível, e até mesmo comum, deparar-se com situações em que outros integrantes da família sabem da existência dos abusos e se omitem diante de sua prática. Essa situação, usualmente, é “justificada” como sendo por motivação financeira, posto que, em diversos casos, o perpetrador do crime é o provedor da família”, relatou a titular da DEP.
A delegada destacou que a educação escolar teria papel crucial para auxiliar crianças e adolescentes a identificarem que estão sendo vítimas desse crime.
“Educação sexual não é um assunto que deve ser interpretado como algo para ensinar crianças a fazer sexo, mas sim uma temática que as auxiliaria a entender o próprio corpo e a quem é permitido tocá-ló, entendendo o que pode ser considerado abuso sexual e coibindo a sua prática”, informou Beatriz Andrade.