ARTES VISUAIS

O legado dos alegoristas, os próprios 'bichos encantados' da Ilha Tupinambarana

Artistas das alegorias dos Bois Caprichoso e Garantido partilham as vivências e mistérios que rondam as suas habilidades; e sobre 'avisos' e 'inspirações' que parecem vir de esferas espirituais

Laynna Feitoza
online@acritica.com
25/06/2024 às 11:14.
Atualizado em 25/06/2024 às 12:15

Alegorias de Caprichoso e Garantido, posicionadas na concentração do Bumbódromo, guardam histórias de seus criadores (Jorge Alberto)

Os “bichos encantados” que povoam os arredores do Bumbódromo, poucos dias antes do Festival Folclórico de Parintins, enxergam de cima os homens e mulheres que, com suas mãos, dão vida a cada peça, encaixe e aos movimentos alegóricos. Em cada uma dessas pessoas, há histórias de arte e de espírito fundidas com as figuras da religiosidade cabocla, ou aos “monstros” do folclore cosmo-amazônico. Como se fossem um só.

A habilidade dos alegoristas do Festival de Parintins é impossível de ser racionalizada. Talento este que nasce de dentro para fora. Na maioria das vezes, tal talento desses artistas desconhece a esfera acadêmica da engenharia ou arquitetura. A construção do aprendizado dos alegoristas é amparada pelo ensino dos artistas mais velhos, com a lapidação da habilidade ano após ano. Também rondam esse processo chamados, inspirações e até avisos, que vem por meio de sonhos. Afinal, nasce de dentro para fora o talento? Ou será que mora, dentro de cada alegorista, o próprio “bicho encantado”?

Algles Ferreira, alegorista do Boi Caprichoso (Junio Matos)

O artista plástico Algles Ferreira, 44, alegorista no Boi Caprichoso, é cria do Palmares e desde criança tinha o dom do desenho. Por volta dos 10 anos de idade, se tornou frequentador da escolinha de artes do Irmão Miguel, um missionário italiano que veio a Parintins junto com padres e que também desenhava, pintava e esculpia. O tempo foi passando e Algles foi convidado por Karu Carvalho, que já foi artista do Touro Negro, para fazer parte do time azul e branco em 1995. Suas primeiras funções foram de projetista, desenhista, e foi ali caminhando degrau por degrau. “Fiz pintura, escultura, até chegar ao ponto de administrar uma equipe, ser chamado de artista de ponta. Que é o artista que vai comandar a equipe e tirar do papel a alegoria”, pondera ele.

Algles conta que, com ele, acontece um processo curioso – e um tanto misterioso. Ferreira alega sonhar com elementos das alegorias e, tempos depois, recebe do conselho de artes do Caprichoso a demonstração daqueles mesmos elementos. “É algo estranho, que a gente não consegue explicar, mas acontece muito comigo. Depois, quando chego para receber meu projeto, eu falo ‘Caraca, casou certinho com o que eu tinha sonhado’. E o que dá, eu já vou introduzindo artisticamente, sem ofuscar o projeto. Apesar de termos liberdade do conselho de artes para criar e sonhar, eles entregam um desenho com uma sinopse. Mas você tem liberdade para sonhar, afinal você é o artista”, destaca ele.

Ele exemplifica que, neste ano, sonhou com elementos da alegoria de Mothokari. “Claro que ainda não sabia que seria Mothokari, mas sonhei com as lâminas, as serras girando. Com as raízes. Introduzi as raízes aqui no fundo, e as raízes da frente, por onde sobem os povos indígenas. Temos nela todo um cenário de destruição, de garimpo. Mas eu consegui, fui introduzindo as coisas que tinha sonhado e todo ano é isso”, coloca ele, lembrando que, no ano anterior, também sonhou com alguns elementos do ritual Yreruá.

Avisos

Kennedy Prata, alegorista do Boi Caprichoso (Junio Matos)

Também do Boi Caprichoso, o artista Kennedy Prata, 38, começou a trabalhar com alegorias aos 14 anos, ajudando a preparar um desenho aqui, a colorir ali, a preparar a tinta para algum pintor. “Passou um tempo, e eu já estava pintando alguma coisa... não demorou e eu já tinha minha própria peça. Depois fui entrando na área de escultura, aprendendo a esculpir”, afirma ele, lembrando que ele mesmo, de forma autodidata, começou a estudar anatomia em casa. Depois de um tempo, Rossy Amoedo me convidou para o Rio de Janeiro, onde conheci outros artistas e pude aprender um pouco mais”, declara ele.

Kennedy, por sua vez, já recebeu avisos em sonhos acerca de certas coisas que poderiam ocorrer em seus projetos alegóricos. “Em 2018, cheguei a sonhar que ia acontecer algo ruim comigo e, no dia seguinte, me ligaram e falaram ‘Kennedy, está pegando fogo na sua alegoria’. Quando cheguei na concentração estava só a ferragem, entendeu? Mas fui avisado antes... eu não sei se poderia ter evitado ou me pegado assim com Deus, para me proteger ali”, relembra o artista.

Prata alega não entender muito bem sobre como o dom artístico se estabeleceu, mas afirma se sentir “diferenciado”. “O parintinense por si só é abençoado. Só no meu bairro, tem umas 10 pessoas que trabalham no boi e envolvidos na arte, quanto na solda, escultura, pintura. Mas eu me vejo assim, dessa forma mais mística. Algo mais sobrenatural. Acho que sim, porque sai de nós, nós criamos as alegorias. O conselho de artes passa para nós o desenho, mas é uma parte de nós ali na arena”, aponta ele.

Inspiração

Neto Barbosa, alegorista do Boi Garantido (Daniel Brandão)

O alegorista Neto Barbosa, 31, do Boi Garantido, iniciou a sua jornada nessa profissão aos 13 anos de idade, por volta de 2006. Seu aprendizado começou nos galpões do “boi contrário”, como ele mesmo diz, onde ele exercia a função de auxiliar. “Eu tava ali para aprender, num horário que não atrapalhasse meus estudos. Meu pai é mestre em artes graduado, e ele sempre me ensinou a desenhar, pintar. Mas quando cheguei dentro do galpão, comecei a aperfeiçoar e a ganhar mais conhecimento com meus parceiros de trabalho. O tempo passou e tive a oportunidade de assinar como artista responsável por alegoria no Boi Garantido”, afirma ele.

Neto afirma ter recebido inspirações, por meio de sonhos, em relação ao acabamento das alegorias. Exemplo disso é a alegoria de “Lendárias Amazonas”, que ele assina neste festival. “Tive vários sonhos em outros anos, em relação a ver minha alegoria toda iluminada, como se fosse um ser de luz dentro da arena. Acabei remoendo o sonho por dias, e queria saber o que essa mensagem queria passar para mim. Foram dias de estudo tentando desvendar aquela mensagem”, diz ele. Neste ano, ele ganhou do bumbá a possibilidade de fazer uma alegoria com estrutura vazada, o que fez Neto compreender a inspiração concedida pelo sonho.

“Esse ano estou conseguindo fazer um cenário totalmente vazado para a gente utilizar iluminação interna. Durante todos esses anos, são feitos barrancos nas alegorias e isso acaba ofuscando um pouco o trabalho nosso. Minha ideia em relação a esse sonho era fazer a alegoria desse jeito, com iluminação tanto nas esculturas que vão fazer as transformações, quanto no cenário. Durante todos esses anos no Garantido, eu nunca tive a oportunidade e a condição de estar executando dessa maneira o meu trabalho junto com a minha equipe. Graças ao nosso presidente e vice, eles conseguiram dar suporte para que conseguisse realizar esse meu ‘sonho’ [literalmente]”

Sobrenatural

Ozeias Bentes, alegorista do Boi Garantido (Junio Matos)

Por volta dos 5 anos, o alegorista Ozeias Bentes, 61, fazia desenhos na areia do interior onde morava. “Eu morei no interior, com meus avós, com meu pai, no meio do mato, comendo peixe, na beira do rio”. Com o passar do tempo, ele começou a trabalhar com alegorias em decorrência do seu trabalho como artesão. “Na época, os historiadores eram as pessoas que começaram a trazer a gente para trabalhar”, diz. A inspiração do artista Jair Mendes também foi um fator fundamental para o desenvolvimento do trabalho dele. “Ele era nosso mestre, queríamos chegar ao nível dele. Em Parintins, cada artista vai servindo de exemplo um para o outro, para dar seguimento nessa arte impressionante daqui”, comenta.

Bentes acredita que, o fato de não estudado nenhuma arte pelo viés acadêmico tem, de fato, relação com aspectos sobrenaturais. “Conseguimos mentalizar a projeção, tanto de desenho como daquela estrutura geométrica, tipo engenharia. Sabemos como se constrói uma base, uma escultura, um desenho, tudo desenvolvido com o pensar mesmo, não tem um mestre pra dizer. Queremos manter a tradição de falar sobre o Garantido, sobre a Amazônia e apresentar a Amazônia além das alegorias, das fantasias. Então acho que isso é uma espiritualidade”, aponta ele.

Ozeias também destaca a vontade de aprender do parintinense neste processo. “Vejo que encontramos certa dificuldade de achar pessoas que têm essa vontade, como as pessoas daqui da cidade têm. Mesmo sem ter passado por academia na área de engenharia. É um dom e vem de Deus. Uma intuição que dá e nós fazemos. E o Festival cobra isso das pessoas com as quais ele trabalha. Se faz uma luta espiritual consigo mesmo para desenvolver aquela arte, entendeu? Aquela alegoria, uma fantasia. Se vier o melhor artista de faculdade, de estudo teórico, ao chegar aqui para construir esse espetáculo, vai ficar completamente perdido. Não vai conseguir valer o que ele aprendeu na faculdade aqui”, aponta ele.

Os criadores das criaturas encantadas manifestam a essência de um aprendizado que não se compreende e não se justifica. Apenas se é e se vive. O alegorista parintinense cria e recria a partir da sua percepção de arte e de vida. O fato é que as grandes criaturas sobrenaturais, distribuídas pelos arredores da arena, também nascem de dons sobrenaturais. De pessoas sobrenaturais. De dentro de outros “bichos encantados”.

  

Assuntos
Compartilhar
Sobre o Portal A Crítica
No Portal A Crítica, você encontra as últimas notícias do Amazonas, colunistas exclusivos, esportes, entretenimento, interior, economia, política, cultura e mais.
Portal A Crítica - Empresa de Jornais Calderaro LTDA.© Copyright 2024Todos direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por