Da Caricatura à Representatividade

Mãe Catirina, Pai Francisco e Gazumbá viram símbolos da luta antirracista no Boi Caprichoso

Na busca pela construção protagonismo negro, Ádria Barbosa, Fábio Modesto e Kelysson Kastro desconstroem estereótipos dos personagens que são a marca da lenda do bumbá, no Bumbódromo de Parintins

Robson Adriano
online@acritica.com
22/06/2024 às 11:15.
Atualizado em 22/06/2024 às 11:15

Os três são responsáveis pela ressignificação dos personagens da história de boi-bumbá, que antes vistos como caricatos, agora são protagonistas da luta contra o racismo e também de empoderamento negro (Foto: Daniel Brandão/A CRÍTICA)

Parintins - Um auto de resistência negra. Ádria Barbosa, 33 anos, Fábio Modesto, 27 anos, e Kelysson Kastro, 30 anos, são Mãe Catirina, Pai Francisco e Gazumbá do boi Caprichoso, respectivamente. Os três são responsáveis pela ressignificação dos personagens da história de boi-bumbá, que antes vistos como caricatos, agora são protagonistas da luta contra o racismo e também de empoderamento negro.

Boi Caprichoso transforma o Auto do Boi em um Auto de Resistência Negra (Foto: Daniel Brandão/A CRÍTICA)

Ádria aceitou o convite em 2017 feito pelo presidente do conselho de artes, Ericky Nakanome. “A Catirina, em 2016, ainda era um homem vestido de mulher. A primeira mulher preta, representando a Catirina, sem ser caricata, sou eu. A gente começou uma desconstrução. O festival acontece a quase 60 anos, e nunca se questionaram o porque dos personagens negros serem representados de forma caricata”, declarou.

Ela também se desconstruiu junto com Catirina. “A mãe Catirina caricata foi se desconstruindo de mim e mostrando a mulher preta que sou", pontuou.

"Você se reconhecer uma mulher preta na Amazônia, lugar onde a mulher bonita é a cunhã-poranga de cabelos longos e liso, é difícil. Nenhuma criança tem o sonho de ser mãe Catirina. É algo a se pensar: porque essa invisibilidade? Porque não ser Catirina?”

Aos 33 anos de idade, Ádria Barbosa encarna Mãe Catirina, que no Auto do Boi, grávida, desejava a língua do boi preferido do dono da fazenda. É a história que dá origem ao Boi-Bumbá Caprichoso (Foto: Daniel Brandão/A CRÍTICA)

Mãe Catirina foi um presente para Ádria. “Foi muito difícil convencer meus pais. Porque a Catirina ainda era alguém ligada ao ‘feio’. As crianças internalizam o que veem e, se assistem um negro sendo caricato, causa afastamento. Vão achar que também é feia. A Catirina foi se desconstruindo: saiu o black face e o macacão preto, para dar vez a uma pele preta de fato. Criamos corpo dentro da arena”, frisou.

Ádria foi acusada de se afastar da tradição. “Identidade é aquilo que representa. Diziam que estava descaracterizando a tradição. Pessoas pretas sentem a dor do racismo, sentem o que é ser considerado feios e não terem voz. O Festival de Parintins tem a responsabilidade de agora recontar essa história. É a nossa vez de contar nossas histórias. Pelo lado de quem resiste e está existindo para reexistir”.

Mãe Catirina emponderou Ádria, que agora deseja emponderar mais mulheres pretas. “E eu quero ser essa mulher preta que vai dar força para outras mulheres. Para eu chegar aqui, outras mulheres pretas vieram antes de mim e me deram forças. Teve alguém que deu o passo inicial para que pudéssemos estar aqui e para chegar mais longe. Esse passo que demos não é suficiente, a gente quer ir mais além”, finalizou.

Mãe Catirina em ação durante ensaio técnico do Boi Caprichoso, no Curral Zeca Xibelão (Foto: Daniel Brandão/A CRÍTICA)

Gazumbá

Kelysson é quilombola do quilombo rio Andirá, que fica a quatro horas de barco de Parintins. A relação dele com o boi Caprichoso é desde a infância. “Eu nunca tive vergonha de falar de onde eu sou. Sou Kelysson do quilombo do rio Andirá. Na minha pesquisa vi que o Gazumbá não é diferente de mim. Na minha comunidade sempre danço as danças tradicionais, como ‘a onça te pega’ e o ‘langdon’”, disse.

Kelysson Kastro, de 30 anos de idade, se identificou com o personagem Gazumbá, o qual interpreta nas apresentações do Boi Caprichoso (Foto: Daniel Brandão/A CRÍTICA)

Gazumbá é Kelysson na realidade. “Sempre lutando contra preconceitos na vida diária. Sendo resistência. Eu me vi no personagem. Eu tinha vergonha do meu cabelo e da minha imagem. Eu comecei a me aculturar de novo. O blackpower é minha coroa que descobri nesse processo de me assumir negro e de construção de uma identidade, voltada para a minha realidade de ser quilombola”, disse Castro. 

Ele relembrou um episódio de racismo que viveu na infância.

“Eu soube que era negro quando voltei de uma aula com meu gêmeo. Caí em uma poça de lama que sujou uma moça. Pedi desculpas e segui. O marido dela pegou lama com a mão e esfregou no meu rosto e disse ‘seu preto sujo’. Eu comecei a chorar e contei para a minha mãe. E ela me aconselhou: preto tem que estudar porque a vida do preto não é fácil”, revelou.

Kelysson é quilombola do quilombo rio Andirá, que fica a quatro horas de barco de Parintins (Foto: Daniel Brandão/A CRÍTICA)

Pai Francisco

Fábio começou como Gazumbá e no final de 2019 assumiu o papel de Pai Francisco. “Fui estudar as características do personagem para organizar uma nova identidade. Trouxe a característica do personagem negro e tirei a imagem de ser apenas alguém engraçado na arena, para ser representativa da cultura preta dentro do festival. Somos o início da história de boi-bumbá”, disse Modesto.

Para Fábio a cultura negra está igualmente entranhada no festival como a indígena e a cabocla.

“É necessário afirmar e reafirmar o quanto a cultura negra está estranhada no ser da Amazônia, não só a cabocla ou indígena. E dentro da arena temos essa responsabilidade reafirmar: somos negros e na Amazônia tem cultura negra. Desde criança tenho lutas”, falou.

Fábio Modesto, 27 anos, interpreta Pai Francisco após já ter interpretado Gazumbá no passado (Foto: Daniel Brandão/A CRÍTICA)

O racismo e a intolerância religiosa são as pautas mais urgentes na classificação de Fábio. “A figura do Pai Francisco me ajuda a externalizar todos esses sentimentos. Tento alinhar as pautas para que outros se sintam inspirados. São lutas não somente minhas e internas, mas de várias pessoas que sofrem diariamente. Quero ser uma pessoa que esteja de mãos dadas com quem também sente que todos os dias está resistindo”, finalizou Modesto.   

A história do Auto do Boi

Mãe Catirina, negra grávida, fica com desejo de comer a língua do boi mais querido do seu amo. Para satisfazer a esposa, Pai Francisco mata o boi e provoca a irá do patrão e tristeza da sinhazinha da fazenda, filha do amo.

Na tentativa de reviver o boi, o amo chama o pajé da tribo da região para, com sua pajelança, ressuscitar o animal amado. Com danças e orações o indígena consegue trazer de volta o boi, porém, agora bumbá, de pano e de brinquedo, criando uma nova cultura.

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