OPINIÃO

O PL, a CNBB e as mulheres

Ao manifestar-se em apoio ao PL do Estuprador, entidade ajuda a fincar uma estaca no coração das mulheres*

Por Ivânia Vieira
29/07/2024 às 09:15.
Atualizado em 29/07/2024 às 09:15

Manifestantes à favor da legalização do aborto participam de sessão no Senado (Geraldo Magela/Agência Senado)

“Temos de reconhecer que estamos pregando para o vento”, disse-me há três semanas um padre jesuíta cuja história sacerdotal é de compromisso com os mais pobres, os desprovidos, a gente posta à margem. A declaração foi feita ao comentar a situação dramática no Rio Grande do Sul, a frágil percepção da responsabilidade humana na feitura da atual realidade e o apetite guloso em ampliar áreas privatizadas ao ponto de agir para transformar o rio Guaíba em propriedade particular.

Na sexta-feira (14/06/24) ao saber da nota da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil em apoio ao Projeto de Lei nº 1.904/2024, o “PL do Estuprador”, lembrei a preocupação e a tristeza do padre jesuíta: a quem quer agradar parcela dos bispos brasileiros ao selar o apoio a essa proposta retrógrada, inconstitucional e virulenta?  Não é a Deus.   

Reconhecemos o quanto a CNBB mudou nas últimas décadas e amoldou a atuação sacerdotal de um território ultraconservador na gestão da fé para outro agir assumindo as dores e as angústias dos pobres numa opção preferencial. Na juventude, minha formação tem muito dessa CNBB, representada em mulheres e homens em missão nesta Amazônia e no Amazonas. Aprendi sobre a importância da igreja viva e caminhante diante do apelo de alguns para construir prédios e aumentar o uso de correntes e de cadeados como parte da segurança dessas edificações: “tá vendo aquele edifício, moço?...”

Aos 72 anos, a serem completados em outubro, a Conferência Nacional dos Bispos enfrentou a própria história e inaugurou a reparação de condutas tomadas no passado. O corpo diretivo da instituição fez travessias da igreja em paz com o silêncio e o silenciamento, da benção à elite econômica-política e da distância dos pobres para a outra Igreja encarnada nas vítimas da opressão. A postura rendeu credibilidade à instituição, fazendo-a uma das mais procuradas pela imprensa quando dos momentos difíceis vividos pelo país. A fala da CNBB era buscada e estava situada entre a credibilidade e a audiência tanto por parte dos católicos quanto dos não católicos, dos intelectuais e dos coletivos sociais.

Ao manifestar-se em apoio ao “PL do Estuprador”, a CNBB ajuda a fincar uma estaca no coração das mulheres. A postura da instituição dói mais em nós, mulheres, que o PL em si. Feminicidio, estupro e outras violências domésticas e estruturais marcam a vida da mulher no Brasil. São 822 mil estupros por ano ou um estupro a cada dois minutos (IPEA/junho de 2024). Ao se colocar favorável ao PL, a Conferência dos Bispos endossa as negociatas político-ideológica feitas por parlamentares usando os corpos das mulheres brasileiras, punindo-as à moda da inquisição.

Há muito tempo as mulheres, pesquisadores e juristas responsáveis, lutam para que o aborto seja percebido e compreendido como questão de saúde pública e não criminal. Teria sido um marco ver a CNBB de 2024 mobilizada nessa direção da escuta da dor das mulheres e no compromisso de ampliar o escutar e o agir pela garantia dos humanos da mulher no Brasil que está submetida a uma das longas e perversas ações de violência. Nesse momento, a carta circula, faz a festa da direita e da ultra direita enquanto mulheres, meninas, estão sendo estupradas por aqueles que deveriam protege-las, e, grávidas, devem fazer o que com esse ato de violação, da crueldade praticada contra seus corpos? Sigo escutando a fala de um Jesus caminhante e corajoso, e dos sacerdotes inquietados pela missão anunciar a boa nova e denunciar a perversidade.    

 * Artigo publicado no jornal A Crítica em 19 de junho de 2024

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