Walter Salles usou a delicadeza para dirigir uma história carregada de agonia e do sofrimento de cortar a alma
Fernanda Torres fez maestria artística na intepretação de Eunice Paiva (Reprodução)
Ainda estamos aqui. Talvez, tenhamos sido ensinadas a ter medo e a não reafirmar a posição: estamos aqui! Estou aqui! Impulsionadas a aceitar a acomodação dos acontecimentos e, esgotadas, sair de cena, baixar a cabeça, entristecer o rosto, chorar por dentro e apressar a morte. Não mais dançar, não mais sorrir, não mais celebrar a vida. Sucumbir.
O cineasta Walter Salles usou a delicadeza para dirigir uma história carregada de agonia e do sofrimento de cortar a alma. Fernanda Torres fez maestria artística na intepretação de Eunice Paiva. Como contar, pelo cinema, a história dessa mulher em meio a história do marido e de outros fatos igualmente fortes durante a vigência do regime ditatorial no Brasil? Conseguiram.
O Globo de Ouro – prêmio inédito para o Brasil – conquistado por Fernanda Torres na noite de domingo (5), não é a derrota ou o desbancar de outras atrizes reconhecidas mundialmente e habitantes frequentes do país Hollywood. O arranjo citado por muitos repórteres e analistas presentes no evento é parte do vício de conduta jornalística em usar o repertório da guerra onde vitória se confirma pela destruição de povos, pessoas e lugares. Nessa lógica, não há lugar a outras atitudes, como celebrar a premiação honesta, neste caso, a outra atriz, ator, diretor. Houve lugar na atormentada cidade do cinema e outros laços estão sendo agora tecidos.
Também nesse sentido, ‘Ainda estou aqui’ promove afetos revolucionários. Reafirma que podemos ser generosos e gentis. Vimos cena semelhante, na Olimpíada de Paris, no ano passado, na entrega da medalha de ouro à ginasta brasileira Rebeca Andrade, quando as norte-americanas Simone Biles e Jordan Chiles a reverenciaram e o mundo reverenciou as três.
O filme de Salles mobilizou mais de 2 milhões de brasileiros, muitos deste já não sabiam o que era uma sala de cinema, outros forma apresentados a ela e, depois do Globo de Ouro, o interesse de ir e ver só aumenta. Em Manaus, grupos de mulheres agendam a ida ao cinema; adolescentes e jovens – distanciados das aulas sobre a ditadura civil-militar no país – foram assistir o filme, muitos se emocionaram com o que viram e as perguntas não param: quem é Eunice Paiva? Rubens Paiva? O que foi a ditadura no Brasil?
Eunice é uma entre tantas mulheres torturadas e mortas na vigência do regime ditatorial. Lutou pelo direito à justiça, à verdade e à memória do marido, assassinado em 1971. Foram 25 anos até conseguir que o Estado brasileiro emitisse o atestado de óbito de Rubens Paiva. E como advogada dedicou-se à defesa dos direitos dos povos indígenas.
Nas memórias carregadas e na alegria do prêmio recebido, Fernanda Torres e Salles nos colocam diante dos tempos obscuros do presente. No Brasil, os povos indígenas necessitam ter seus direitos garantidos. E, neste 8 de janeiro, é data de promover a memória sobre a tentativa de golpe em 2023 que passa por aprendizados sobre democracia e defesa de “um Brasil que vale a pena”. É possível sorrir e ser tenaz.