OPINIÃO

A truculência do poder e os fios da resiliência

Processo utilizado na reintegração de posse repete falhas e brutalidade

Ivânia Vieira
20/12/2023 às 11:39.
Atualizado em 20/12/2023 às 11:39

Comunidade Nusoken no dia da desocupação (Foto: Márcio Silva)

Há três meses, coletivos de mulheres indígenas propuseram algumas questões-chave para enfrentar situações difíceis – várias delas criminosas - impostas aos povos indígenas no Amazonas. No amanhecer do dia 18 de dezembro, na Comunidade Nusoken, no bairro Tarumã, zona Oeste de Manaus, foram concretizados, mais uma vez, a truculência e o cinismo na relação do poder oficial com os povos indígenas e as multidões da periferia socioeconômica nesse Estado.

Para cumprir determinação judicial de reintegração de posse, operadores da lei e da ordem, devidamente amparados por diversos equipamentos, destruíram as habitações erguidas na área, momento antecedido pelo medo e o desespero dos que ali se instalaram. O pedido, dos indígenas, é lugar para morar.

Cinicamente, as falas do Estado apontavam a operação como exitosa: “{...} foram cedidos caminhões de mudança e carregadores que ficaram disponíveis para levar os moradores o endereço que quisessem{...}”. Para o endereço que quisessem?

Em setembro, reunidas pelo Serviço de Ação, Reflexão e educação Socioambiental (SARES) no encontro “Soma dos Quintais – Resistência, Luta e Cuidado”, representantes de organizações de mulheres, das juventudes feministas e periféricas costuraram, juntas, a colcha das realidades em que estavam e estão submetidas. Em segundo momento, apresentaram  o molde da outra colcha, aquela que pretende reunir linhas e fios resilientes para com os retalhos de nós tecer a grande colcha da vida contemplada pelos direitos fundamentais.

Saúde, moradia, educação e segurança formaram, em a "Soma dos Quintais", os pilares do plano de atuação pensados por essas mulheres idosas, jovens, adolescentes. Todos vestidos pelas culturas e a arte de resilir. O que fazem em mais de cinco séculos.

Na comunidade Nusoken, a segunda-feira (18) que antecede a segunda-feira de Natal (25) – um dos mais importantes acontecimentos para os cristãos – se fez marcar pelo drama. No material colhido e disponibilizado pela jornalista Rosiene Carvalho, entre tantas vozes lidas e escutadas estão as das mulheres. Uma delas, chorando, diz não ter para onde ir.

Sim, é possível e provável que no grupo de ocupantes da área situada no bairro Tarumã, existam grileiros e outros que necessariamente querem a terra como mercadoria. A história do uso da terra tem essa marca, a região do Tarumã é uma das áreas da cidade com as marcas da expulsão e da invasão perfumadas. O processo utilizado na reintegração de posse repete as falhas e a brutalidade utilizadas nesses episódios em tempo de ditadura ou de democracia. Há desejo de mudança por parte do Estado nesse comportamento?

Nusoken, na cosmologia sateré-Mawé, remete ao lugar da morada dos heróis míticos, onde habitam as pedras, o original, o princípio do conhecimento. A cidade de Manaus, a mais indígena das capitais brasileiras (IBGE, 2022), revira-se para tentar impedir um Nusoken  manauara.

A busca dos sateré-mawé por moradia em Manaus tem nos anos de 1970 um dos registros. É em plena ditadura militar que alguns deles se deslocam para a capital.  No ano de 1981, viviam na periferia socioeconômica da cidade 88 saterês (ROMANO, 1996). Em 1990, já eram 5000 compartilhando as novas periferias e as mulheres, de acordo com Bernal (2009), lideravam o fluxo migratório incentivadas pela oferta do trabalho doméstico na capital. Foram essas mulheres, como Zenilda Sateré, que criaram a Associação de Mulheres Indígenas Sateré-Mawé (Amism), no final dos anos de 1990, uma das mais antigas associações de indígenas do País. A luta por um lugar em Manaus, onde possam viver com dignidade continua.    

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