OPINIÃO

A roça como disciplina e território de vida

Viver a roça é tratar a alma, descobrir o significado de existir, estabelecer conexões com a terra, a mata e a água

Por Ivânia Vieira
05/02/2025 às 11:37.
Atualizado em 05/02/2025 às 11:37

(Imagem gerada por IA no Canva/Dreamlab)

Precisamos retomar a roça como território de cura dos males de homens e mulheres, no necessário reencontro de nossos corpos com a terra, no toque dos dedos com sementes e mudas. Na reflexão sobre o tempo de plantar e de colher onde a roça é o mapa revelando-se, revelado. 

Com Rosimere Arapaso, fundadora e hoje vice-coordenadora da rede de mulheres indígenas Makira-Eta, aprendi um pouco da importância de se retirar da cena agitada em Manaus e recolher-se na morada da roça. Em Rosimere Arapaso, viver a roça é tratar a alma, descobrir o significado de existir, estabelecer conexões com a terra, a mata, a água. Mulher com mais de 30 anos de luta em defesa dos direitos dos povos indígenas e das mulheres indígenas, ela própria vítima do racismo e da violência na capital amazonense, Rosimere é uma das referências do movimento indígena do Amazonas.

Nas tarefas do ativismo, a rotina de atividades impôs viagens, reuniões em série, distanciamento físico dos lugares de amorosidade, das conversas com os parentes, no descansar na rede e rir das acontecências caseiras. Pelo menos uma vez ao ano, Rosimere e outras mulheres indígenas ‘desaparecem’ para viver a cultura do roçado.

O pesquisador e professor de antropologia da Universidade de Brasília (UnB), Gersem dos Santos Luciano Baniwa, faz mergulho na sua aldeia, em São Gabriel da Cachoeira, onde o celular não tem função. Na mais recente ‘fuga’, as conversas com os parentes, a água farta e da cor do guaraná, as comidas sem os conservantes e os sucos de frutas colhidas nos quintais compuseram junto aos cheiros e cantorias de pássaros a terapia de reconexão com o lugar de nascimento, de brincadeiras de menino, de observação e de escuta sobre ser indígena e das lutas para permanecer indígena.

“Volto melhor, mais sereno, sinto-me mais saudável e disposto a seguir na marcha que nos cabe marchar neste país”, afirma Gersem Baniwa, uma das referências brasileiras em educação escolar indígena.        

Duarte Pape, arquiteto português, em artigo de 2016, intitulado “As roças de São Tomé e Principe – um património da Lusofonia”, identifica as roças como constituintes {...} da herança mais profunda de um povo, que importa salvaguardar e proteger”. 

 Roçar é descobrir a cada dia o estado de espírito da Natureza da qual somos parte nos pequeninos sinais de reação ao preparo do roçado, nas raízes aprofundando-se, nas folhas, flores, frutos sobressaindo em diferentes tons. Roçar é teimar viver e compartilhar esse jeito onde o coletivo é parte inerente. 

Nesse tempo de agonia e do desespero do mundo, a roça que mora em nós oferece um caminho, uma possibilidade, outro exercício de viver, de aprender, de refazer ou inaugurar a conexão mais importante, a da terra e, com ela, realimentar o toque humanizado, o olhar, o entrelaçar as mãos e o abraço. A roça é disciplina a ser inserida e aprendida como instrumento da cultura, da identidade e do pertencimento.  

Assuntos
Compartilhar
Sobre o Portal A Crítica
No Portal A Crítica, você encontra as últimas notícias do Amazonas, colunistas exclusivos, esportes, entretenimento, interior, economia, política, cultura e mais.
Portal A Crítica - Empresa de Jornais Calderaro LTDA.© Copyright 2025Todos direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por