OPINIÃO

A casa está desarrumada e sem cidadania

Alguns milhares de habitantes do Amazonas estão sendo empurrados para o precipício e à morte

Por Ivânia Vieira
15/03/2023 às 15:32.
Atualizado em 15/03/2023 às 15:32

Local em que oito pessoas morreram após desbarrancamento, na Zona Leste de Manaus (Junio Matos)

A casa está longe de ser apresentada como arrumada. É a desarrumação estampada nas ruas, nas barrancas onde habitações precárias são instaladas, na longa espera por atendimento médico no sistema público, no transporte arriscado de todo dia, na violência de condutas de autoridades públicas e vigência estimulada da cultura de violência amparada pelo esteio do autoritarismo do corpo governamental.

O Amazonas como casa acolhedora se perdeu. Pensar Manaus como porta de entrada a esse pedaço da Amazônia reivindica confrontar as arquiteturas computadorizadas do Estado e da capital com as realidades terrenas desses lugares. A tecnologia pode e ajuda cada vez mais na realização de algumas centenas de atividades do serviço público, na tarefa de administrar um Estado e uma cidade, desde que utilizada com responsabilidade e probidade. Não como recurso de um determinado campo publicitário, de preço elevado, criador de imagens da falsa cidade, do falso Estado, onde tudo funciona próximo à perfeição.

No físico, alguns milhares de habitantes do Amazonas estão sendo empurrados para o precipício e à morte. Não é uma situação nova, apenas se agrava na medida em que políticas públicas na área de planejamento habitacional definham e são usurpadas por donos de terrenos, especuladores e toda uma rede de iniciativas privadas, colocadas como públicas, determinantes das formas e dos preços no uso dos espaços sejam eles destinados à moradia ou a outros empreendimentos.

Tragédias, como a que ocorreu no domingo, no bairro Jorge Teixeira, quando oito pessoas morreram e outras famílias desabrigadas, podem ser evitadas. Trata-se, mais uma vez, da vontade política para a formalização de uma aliança entre os poderes, a sociedade organizada e as instituições de ensino e pesquisa, que tenha na essência a seiva da decência e da responsabilidade constitucional com a qual administradores públicos deveriam se sentir comprometidos.

O desemprego, a informalidade gigantesca e o empobrecimento da população do Amazonas expõem na versão mais perversa a contradição da “casa arrumada” e “pronta”. É necessário olhar cuidadosamente o processo de enriquecimento de determinados grupos com negócios no Estado, ocorrido em tempo recorde, e tornar público o quadro da concentração de renda e de riqueza local em contraponto ao aprofundamento da desigualdade.

Nossos olhos, por meio da mídia, veem fragmentos da pobreza e da miséria em Manaus, a submoradia, a desumanização da vida. Nossos ouvidos escutam falas oficiais racistas como tentativas de explicar as razões da tragédia. Nos demais municípios, onde a cobertura midiática é mais rarefeita e está atrelada aos eventos trágicos, o ver, o escutar e o sentir são agasalhados noutra percepção, por vezes, atenuados pela forte publicidade governamental que pinta o “Amazonas perfeito”.

Os direitos humanos de parcela expressiva das pessoas que vivem no Amazonas e, em recorte, na cidade de Manaus, são negados como se fosse algo normal. Amplos setores dos poderes instituídos no Estado contribuem no enraizamento dessas condições, há certo prazer político-profissional-religioso na extirpação da dignidade de mulheres, homens, crianças e dos idosos.  A casa, se bem inspecionada, assusta e violenta cidadãos e cidadãs, contribuintes e consumidores.       

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