Opinião

As queimadas que rompem os fios de continuidade com o passado

Bruna Rocha
@bruna_cigaran
19/10/2024 às 20:28.
Atualizado em 19/10/2024 às 20:28

Além de apresentar informações valiosas sobre a história da região, o projeto Amazônia Revelada auxiliou nas reformas e ampliações do Museu da Amazônia (Musa), e proporcionou duas novas exposições sobre arqueologia (Alessandro Falco/ Sumaúma)

A degradação ambiental na Amazônia, a maior floresta tropical do mundo, é amplamente discutida por seus impactos no clima global. No entanto, outro efeito das queimadas e da estiagem, menos abordado, é a destruição irreversível do legado histórico e cultural da região, afetando modos de vida tradicionais constituídos ao longo de gerações.

Embora o “mito da floresta virgem” ainda esteja presente no imaginário popular, sabemos que o próprio Estado, na “Marcha para o Oeste”, promoveu vazios demográficos por meio de políticas de genocídio indígena, conforme documentado no relatório da Comissão Nacional da Verdade (2014). Além disso, povos tradicionais, como os seringueiros, foram expulsos de seus territórios, como no caso do Parque Nacional do Tapajós, decretado em 1974 após a remoção violenta de comunidades que ali viviam desde o século XIX.

Com maior disposição para ouvir os Povos da Floresta, novas evidências científicas começaram a questionar esse mito do século XIX, que negou a História aos indígenas. Ferramentas como História Oral, Arqueologia e Ecologia Histórica mostram que, ao longo de 12 mil anos, povos indígenas e tradicionais moldaram a Amazônia como um patrimônio biocultural. Eles concentraram espécies alimentícias e medicinais próximas a assentamentos, criaram solos férteis, como as terras pretas, e manejaram o fogo de maneira preventiva. Essas práticas transformaram a Amazônia em um centro independente de domesticação botânica, legado que inclui plantas como o açaí, mandioca e cacau, que hoje alimentam populações em todo o mundo.

Recentemente, em Manaus, cientistas dos principais centros de pesquisa em arqueologia revelaram resultados importantes usando tecnologia lidar, que permitiu identificar vestígios de antigas civilizações na Amazônia, contradizendo ainda mais a ideia de uma floresta intocada. Esses achados foram apresentados no evento Amazônia Revelada, realizado no Museu da Amazônia de 18 a 21 de outubro. O lidar mostrou áreas de ocupação densa e sofisticada, com estruturas urbanas e agrícolas escondidas sob a floresta, destacando o manejo intenso dos povos ancestrais. 

As informações que começam a ser trazidas à luz pelo projeto podem ser um importante reforço no esforço para proteger os territórios dos povos da floresta, ameaçados por projetos de desenvolvimento como a BR-319 e a Ferrogrão, pelo avanço da fronteira agrícola que queima as florestas e revolve os solos e pela tese ruralista do marco temporal, que persiste em Brasília como uma tentativa de acabar com as demarcações de terras indígenas

Além de apresentar informações valiosas sobre a história da região, o projeto Amazônia Revelada auxiliou nas reformas e ampliações do Museu da Amazônia (Musa), e proporcionou duas novas exposições sobre arqueologia, que agora estão abertas ao público. O evento reforçou a importância de valorizar não apenas o meio ambiente, mas também reconhecer os saberes e práticas ancestrais que moldaram a floresta ao longo dos séculos, para promover a proteção dos territórios dos povos indígenas e tradicionais amazônicos.

A autora é doutora em Arqueologia pelo Institute of Archaeology da University College London (UCL) e professora do Programa de Pós-graduação em Antropologia e Arqueologia e do Curso de Bacharelado em Arqueologia da Universidade Federal do Oeste do Pará. Atualmente é vice-presidente da Sociedade de Arqueologia Brasileira e uma das coordenadoras do Projeto Amazônia Revelada. Trabalha em territórios tradicionalmente ocupados pelo povo Munduruku e por beiradeiros no rio Tapajós e na Terra do Meio. Discute temas envolvendo povos da floresta, seu patrimônio cultural, o impacto de grandes empreendimentos e o papel do licenciamento ambiental nesses contextos de conflito socioambiental.

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