Precisamos contar mais e melhor: dados de qualidade são condição para cidadania

Por Beatriz Accioly - Coordenador de parcerias do Instituto Avon

25/07/2024 às 16:09.
Atualizado em 25/07/2024 às 16:09

Certa feita, eu estava procurando um livro infantil para presentear meu afilhado. Assim descobri “Todas as pessoas contam”, lançado no Brasil em 2020, e escrito por Kristin Roskifte, uma ilustradora norueguesa que combina princípios da matemática a reflexões acerca da diversidade humana e das diferenças. Contar tem, no livro, duplo sentido: por um lado, todas as pessoas realizam cálculos mais ou menos complexos cotidianamente; por outro, todas as pessoas, por mais diferentes que sejam, deveriam ser igualmente importantes para o mundo. Todo mundo faz contas e todo mundo importa. O livro foi um acerto para o pequeno e para mim. 

A relação entre algo ser quantificável e importar para a sociedade não é apenas um jogo de palavras simpático para um livro voltado para crianças. Mensurar fenômenos sociais para realizar diagnósticos cada vez mais precisos, planejar intervenções eficazes com orçamentos limitados, bem como monitorá-las e avaliá-las é uma das condições necessárias para a qualidade das respostas públicas aos diversos problemas sociais que enfrentamos enquanto nação. Pois, aquilo que não contamos, ou que contamos mal, seja em números ou em boas narrativas, acaba não contabilizando como prioridade na hora de repartir os escassos recursos. Aquilo que a gente não conta, não conta. E só começamos a dar conta daquilo que contamos bem. 

Essa frase é especialmente verdadeira no ecossistema de violência doméstica contra as mulheres no Brasil. À primeira vista, parece que somos inundados com estatísticas e números cada vez mais alarmantes. Carecemos, contudo, de um sistema de informações unificado e robusto que nos permita orientar o planejamento, a mensuração e a avaliação de nossas políticas públicas. 

Como mensurar o verdadeiro tamanho do problema que enfrentamos? Qual a diferença entre o número de registros oficiais e de situações de violência? Quantos novos casos acontecem por ano? Quantos desses casos chegam ao conhecimento não só da polícia ou dos serviços de saúde, mas também da assistência social? Entendemos o que acontece com os casos que não chegam aos serviços públicos? Conseguimos mapear a jornada das mulheres que buscam apoio público entre as opções fornecidas pelo Estado, e estimar qual a taxa de eficiência de nossas políticas públicas na construção de novas trajetórias de vida para estas mulheres e suas famílias? 

Visando trazer respostas de qualidade para algumas dessas perguntas foi criado o “Mapa Nacional da Violência de Gênero”, lançado em 2023, que unifica as principais bases públicas de violência doméstica no país. No Mapa, é possível encontrar os registros oficiais feitos pelas áreas da saúde, da segurança pública e da justiça. Há, ainda, muito a ser melhorado em cada uma dessas bases, mas elas são um caminho na direção de um diagnóstico mais preciso dos casos que chegam ao conhecimento das políticas públicas. 

O Mapa também traz os dados da Pesquisa Nacional da Violência contra a Mulher, realizada pelo DataSenado e pelo Observatório da Mulher Contra a Violência do Senado Federal, a maior e mais longa série histórica brasileira que mapeia opiniões e vivências acerca da violência doméstica. Em junho de 2024, o Mapa foi atualizado para, pela primeira vez, trazer recortes estaduais da pesquisa.

Ao longo do processo de confecção do Mapa, enfrentamos, também, o desafio de como comunicar amplamente levantamentos tão necessários, pois tão importante e desafiadora quanto a construção de um grande levantamento, é a elaboração de estratégias de design e visualização de dados que democratizam o acesso aos resultados de pesquisas e estatísticas.

A Pesquisa Nacional é a nossa estimativa mais fiel do tamanho do problema em nosso país: cerca de metade das mulheres brasileiras acima dos 16 anos já passaram por alguma forma de violência doméstica. Chama a atenção, também, que parte das mulheres brasileiras ainda não reconhece espontaneamente ser vítima de violência doméstica, mas reconhece ter passado por situações de violência quando estimuladas. Em outras palavras, ainda é difícil para muitas mulheres nomear e reconhecer que está passando por uma situação de violação de direitos. 

Apesar da incidência de violência doméstica ocorrer de maneira relativamente uniforme em todo o território nacional, por exemplo, a pesquisa identificou que estados da região Norte do Brasil, como Amazonas (57%), Amapá (56%), Rondônia (55%) e Acre (54%), atingem patamares ainda maiores do que os índices nacionais. No Sudeste, Rio de Janeiro e Minas Gerais também estão bastante acima da média nacional, ambos com 53%. 

Outro diagnóstico que a pesquisa permite traçar é o de que apesar da Lei Maria da Penha ser uma lei amplamente conhecida, apenas 2 em cada 10 mulheres consideram estar bem-informadas sobre seus mecanismos de apoio e proteção. As mulheres do Norte e Nordeste estão ainda mais acima da média nacional, principalmente no Amazonas (74%), Pará (74%), Maranhão (72%), Piauí (72%), Roraima (71%) e Ceará (71%). O território com maior índice de conhecimento é o Distrito Federal, com ínfimos 30%. Ou seja, às vésperas de comemorarmos 18 anos da sanção da Lei Maria da Penha, nenhum território vai bem neste indicador. 

Este é o maior e melhor diagnóstico que temos do tamanho do problema social que é a violência doméstica e familiar contra mulheres no Brasil, fornecendo informações não somente sobre a demanda, mas também acerca do conhecimento sobre a Lei Maria da Penha e os serviços públicos disponíveis, bem como sobre quem não está acessando os serviços. Imaginemos que estas 40 milhões de mulheres em situação de violência resolvessem procurar os serviços públicos de apoio e proteção, estaríamos preparados? Essas são informações absolutamente oportunas para tomada de decisões e planejamento de nossas políticas públicas.

Dados são fragmentos de histórias de centenas, milhares, milhões de pessoas. Eles não são um fim em si mesmo, mas meios a partir dos quais podemos compreender realidades, fazer diagnósticos, bem como elaborar intervenções eficazes e eficientes. Dados são caminho para a cidadania.  Informações de qualidade apoiam a alocação de recursos, auxiliam a entender dinâmicas, falhas, demandas e emergências. Informações, quando de qualidade e bem aportadas, implicam em acesso ou ausência de direitos e podem salvar ou custar vidas. 

O que as informações trazidas pelo Mapa Nacional da Violência de Gênero apontam é que estamos diante de um problema massivo, que atinge milhões de mulheres e ainda de forma desproporcional em alguns estados, que a maior parte dos casos não chegam ao conhecimento das autoridades e da gestão pública, e que as mulheres brasileiras, mesmo depois de 18 anos, ainda não conhecem de fato os mecanismos de proteção e apoio oferecidos pela Lei Maria da Penha. Este cenário necessita de priorização de recursos e atenção, afinal o lugar de prioridade é no orçamento e na gestão, e não apenas na retórica.

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