OPINIÃO

O Dia Internacional da Mulher: da cultura da mulher às mulheres da/na cultura

Setor cultural e criativo é afetado pelos mesmos estereótipos das questões de gênero que afetam outras áreas profissionais

Por Adalberto da Silva Retto Júnior*
07/03/2024 às 16:09.
Atualizado em 07/03/2024 às 16:38

Dedico este texto à minha avó, Neomésia Cardoso Retto, falecida no dia 08/03/2007, que foi uma das mulheres que contribuiu significativamente para a preservação e valorização do patrimônio cultural e artístico de Tefé e do Amazonas.

 O Dia Internacional da Mulher, dia 08 de março, é comemorado em todos os lugares. No entanto, falar simplesmente de uma celebração não é inteiramente correto: o dia é de fato dedicado à memória e à reflexão sobre as conquistas políticas, sociais e econômicas do gênero feminino.

 A palavra ‘patrimônio’ traz em si a raiz ‘pater’ que, literalmente, significa ‘dever de pai’, obrigado a ‘cuidar das coisas’. Completa-se com o termo “matrimônio”, o “dever da mãe” que é, em contraposição, obrigada a “cuidar das pessoas”. O resultado é um equilíbrio perfeito entre os dois papéis na criação de um imenso panorama da cultura internacional.

As disparidades de gênero constituem, certamente, um dos principais obstáculos ao desenvolvimento sustentável, ao crescimento econômico e à luta contra a pobreza. Se pensarmos no patrimônio cultural e artístico, no sentido de fazer e produzir, são sobretudo as mãos masculinas que escreveram, pintaram, brincaram, construíram, mas também redesenharam a paisagem, recuperaram, plantaram, cuidaram de terras e colheitas, para preservar um país único sob todos os pontos de vista.

As mulheres só tiveram acesso à educação muito mais tarde; esse atraso afetou o seu potencial expressivo por séculos e a cultura das mulheres foi sobretudo fechada dentro do casamento, com poucas exceções. Até a emancipação feminina da era moderna, encontramos importantes formas de artes “domésticas” (bordados e tecidos preciosos), ou formas “caseiras” de expressar a cultura científica (pense, por exemplo, no seu papel na fitoterapia medieval).

A cultura das mulheres na história, portanto, centrou-se acima de tudo nas pessoas e não nas coisas, uma cultura feminina que forjou a ação cotidiana, da educação dos filhos ao cuidado dos idosos, à atenção nas relações e às emoções. Uma cultura que define a nossa identidade e que se expressa, sobretudo, através do comportamento.

Note-se, no entanto, que, embora ainda haja um longo caminho a percorrer, os dados mostram uma forte recuperação do atraso histórico. Ainda são poucas as mulheres escritoras, cientistas, sobretudo nos mais altos cargos das hierarquias.

Mais uma vez, o setor cultural e criativo também é afetado pelos mesmos estereótipos das questões de gênero que afetam outras áreas profissionais. Em 2014, a UNESCO abordou este problema ao publicar um relatório denunciando a marginalização das mulheres da vida cultural, relegadas a determinadas atividades específicas com pouco acesso às esferas de decisão.

Nos últimos anos, multiplicaram-se as ações em defesa dos direitos das mulheres, graças ainda a um número crescente de associações comerciais. No entanto, os últimos relatórios divulgados tanto na Europa como nas Américas retratam uma situação que não mudou muito.

Para os profissionais da cultura, a disparidade de gênero é desencadeada logo na entrada no mundo do trabalho, uma vez que as mulheres são as protagonistas na fase de formação, mas a percentagem diminui na fase de contratação até desaparecer completamente em cargos de gestão.

No domínio das artes visuais, o Museu Nacional das Mulheres nas Artes (EUA) constatou que obras de artistas mulheres representam apenas 3/5% das principais coleções permanentes da Europa e dos Estados Unidos e desses apenas 13,7% eram representados em galerias. Tal como acontece hoje no mercado da arte contemporânea – dos 1,5 milhões de leilões de arte realizados nos últimos 40 anos, obras criadas por mulheres foram vendidas por um montante que beira, se tanto, 50% do valor das pinturas de homens.

No que diz respeito ao patrimônio cultural, campo que inclui numerosos subsetores (arquivos, bibliotecas, artesanato e tradições orais), há uma forte presença feminina nos museus (aproximadamente 78% contra 22% de peças masculinas), mas em cargos de gestão superior os homens ocupam duas vezes mais funções que as mulheres.

Nos setores da arquitetura e do design verifica-se um aumento da componente feminina, sobretudo das faixas etárias mais jovens, na faixa de trinta anos, que representam 53% dos profissionais diante dos 32% de pessoas na faixa dos cinquenta anos.

Registrando a maior disparidade, o setor musical é dominado por 70% de homens: apenas 20% dos compositores e compositoras são mulheres, as quais acabam ganhando em média 30% menos. Além disso, apenas 2,3% das obras clássicas são dirigidas por mulheres e apenas 15% das editoras musicais pertencem ou são geridas por mulheres.

Entretanto, pela primeira vez, a questão da disparidade de gênero no setor cultural e criativo foi posta no centro das políticas públicas nos próximos anos, como uma das prioridades, com o programa Europa Criativa 2021-2027.

O objetivo do desenvolvimento sustentável 3 da Unesco,  ODS 3, vinculado à promoção da igualdade de gênero e do empoderamento das mulheres, permitiu progressos significativos na escolarização e a inclusão das mulheres no mercado de trabalho. A questão da igualdade de gênero alcançou uma visibilidade considerável, mas, dado o quadro muito limitado do ODS 3, não foi possível abordar outras questões importantes, como a violência contra as mulheres, as disparidades econômicas e a presença limitada de mulheres nos órgãos de decisão a nível político.

O ODS 5, entretanto, visa alcançar a igualdade de oportunidades entre mulheres e homens no desenvolvimento econômico, eliminar todas as formas de violência contra mulheres (incluindo a abolição dos casamentos forçados e precoces) e alcançar a igualdade de direitos em todos os níveis de participação entre outros, a saber:

Acabar com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e meninas em toda parte;
Eliminar todas as formas de violência contra todas as mulheres e meninas nas esferas pública e privada;
Eliminar todas as práticas nocivas, como os casamentos prematuros;
Reconhecer e valorizar os trabalhos domésticos e de assistência, não remunerados;
Garantir a participação plena e efetiva das mulheres, e a igualdade de oportunidades para a liderança;
Assegurar o acesso universal à saúde sexual e reprodutiva, e os direitos reprodutivos;
Realizar reformas para dar às mulheres direitos iguais aos recursos econômicos, bem como o acesso à propriedade e controle sobre a terra;
Aumentar o uso de tecnologias de base, em particular tecnologias de informação e comunicação, para promover o empoderamento das mulheres;
Adotar e fortalecer políticas sólidas e legislação aplicável para a promoção da igualdade de gênero e o empoderamento de todas as mulheres.

É uma batalha necessária da democracia, sobretudo no campo da cultura, dado o seu papel basilar e criativo, fundamental para influenciar o imaginário coletivo. Não se trata apenas de valorizar competências profissionais e artísticas, mas de libertar novas energias, capazes de trazer pensamentos alternativos e complementares, processos de inovação, novas linguagens e novas ideias.

(Neomésia Cardoso Retto atuou na preservação e valorização do patrimônio cultural e artístico de Tefé e do Amazonas)


(Neomésia Cardoso Retto atuou na preservação e valorização do patrimônio cultural e artístico de Tefé e do Amazonas)

* Professor Doutor, atua na Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design da Unesp – Campus de Bauru

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