ENTREVISTA

‘O Brasil tem que achar um substituto da Zona Franca’, afirma Samuel Pessôa, economista da FGV

Economista da Fundação Getúlio Vargas e gerente de pesquisas econômicas do banco suíço Julius Baer no Brasil diz que reforma tributária garante Zona Franca, mas dá margem a novo modelo

Waldick Júnior
waldick@acritica.com
24/08/2024 às 11:08.
Atualizado em 24/08/2024 às 11:08

(Foto: Jeiza Russo/A CRÍTICA)

Pesquisador da Fundação Getúlio Vargas e gerente de pesquisas econômica do banco suíço Julius Baer no Brasil, o economista Samuel Pessôa avalia que o texto de regulamentação da reforma tributária (PLP 68/2024) garantiu o ‘status quo’ da Zona Franca, mas abriu espaço para que uma nova matriz econômica seja pensada para substituir o modelo de isenção fiscal.

Pessôa chama a produção em Manaus de “100% artificial” e diz que o modelo não se sustenta. Ele também falou sobre a taxação de super ricos, os índices que demonstram uma melhora econômica do país e a proposta de dar autonomia financeira ao Banco Central. Confira.

Perfil:

Samuel Pessôa:

Estudos: Doutor em Economia pela Universidade de São Paulo (USP).
Experiência:  É pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e gerente de pesquisas econômicas do Julius Baer Family Office (JBFO) no Brasil.

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O senhor é responsável pela área de pesquisas econômicas do Julius Baer, banco suíço que administra patrimônios de famílias. Qual o objetivo da vinda a Manaus? 

Nós somos um Multi-Family Office, quer dizer, nós somos uma empresa que faz a gestão de patrimônio de famílias, e nós viemos com uma equipe para apresentar nosso trabalho e discutir o cenário macroeconômico com famílias de Manaus.

Existe um debate ainda nas ideias, mas fora da agenda até o momento, de taxar super ricos no Brasil. Há quem diga que se isso acontecesse, haveria uma fuga de capital do país. Essa é a sua opinião?

Eu acho que não. Existe um fato real, a gente pode até desconhecer ele, mas é um fato que tem sido bem descrito com as tabulações da Receita Federal no último ano, que o imposto de renda, quando a gente chega no 1% mais rico, no 0,5% mais rico, no 0,1% mais rico, lá no topo da distribuição de renda, deixa de haver a progressividade dos impostos e há até um leve grau de regressividade. O que isso quer dizer?

Progressividade de impostos de renda é uma característica, uma qualidade desejável dos impostos, que conforme a renda da pessoa sobe, a alíquota média de imposto sobe. Então, como proporção da renda, o imposto aumenta nas altas rendas. O imposto de renda no Brasil é progressivo até os 95%, 99% mais rico, mas lá no topo da distribuição de renda, deixa de haver essa progressividade e, portanto, por uma questão de justiça distributiva, faz sentido haver uma agenda na sociedade, no Congresso Nacional, de mudar a tributação, principalmente elementos da tributação sobre o capital, criar essa progressividade também nas altíssimas rendas. 

Não há nenhuma dificuldade, há um diagnóstico e me parece que depois de tramitar a reforma dos impostos indiretos, que tramitou ano passado na forma de uma emenda constitucional e está sendo regulamentada hoje, esse ano, com a tramitação de duas leis complementares, que já foram aprovadas na Câmara e agora estão no Senado, me parece que a agenda do governo passará a ser, junto com o Congresso, discutir aspectos da tributação da renda para que a gente possa aumentar o grau de progressividade lá no topo da discussão da distribuição de renda. A sua pergunta é se isso vai gerar uma imigração em massa de ricos brasileiros para fora do Brasil?

Isso, ou somente do capital. 

Eu acho que não. A gente tem visto, desde o ano passado, quando o ministro Fernando Haddad enviou uma série de projetos de lei para alterar elementos ligados à tributação. Tivemos a questão da tributação dos fundos fechados, tanto domésticos quanto offshore.

Tivemos a mudança da forma de votação no CAF [que julga casos de tributação questionados por grandes contribuintes], retomando o voto de qualidade para o governo. Tivemos a legislação de preço de transferência para as empresas que exportam commodities, que tinham uma regulação ruim. Essas empresas, seja a Petro, a Vale ou as traders de grãos, exportavam commodities por preços muito menores do que os preços de mercado para subsidiárias delas mesmas em paraísos fiscais. Então, mesmo a questão da subvenção do ICMS, uma série de temas tributários que foram tratados no Congresso Nacional, e o que a gente assistiu é uma negociação de bom nível entre o Executivo e o Legislativo.

O Legislativo desempenhou o seu papel de temperar as propostas iniciais do Executivo, sempre que elas eram exageradas, e sempre se buscou o equilíbrio. Então, a minha avaliação é que quando esse tema da reforma dos impostos de renda, com vistas a aumentar o grau de progressividade, for tratado pelo Congresso, o Congresso terá o discernimento e o bom senso que teve até agora.

(Foto: Jeiza Russo/A CRÍTICA)

 "Lá no topo da distribuição de renda, deixa de haver essa progressividade no imposto" - Samuel Pessôa

Há uma avaliação pelos setores econômicos do Amazonas que a Zona Franca de Manaus perdeu no texto de regulamentação da reforma tributária aprovado na Câmara. Cito dois exemplos: fim do crédito presumido para operações internas no comércio e a possibilidade de que novos projetos aprovados pela Suframa após 2023 fiquem de fora da proteção do IPI, que será cobrado em estados com produção concorrente. O senhor tem a mesma visão? Houve perdas?

O fato é que o status quo foi garantido para a Zona Franca. No caso dos novos bens, eles ainda nem estavam sendo produzidos em Manaus. Acho que não houve uma perda na Zona Franca. Agora, eu acho que o Brasil como um todo, e a população amazonense, tem que achar a médio prazo ou a longo prazo um substituto da Zona Franca, porque ela é uma coisa artificial. O que é a Zona Franca? Pego um monte de insumo de motocicleta que é produzido em São Paulo, coloco no caminhão até o porto de Santos, embarca no navio até Pernambuco, coloco no outro navio até Manaus, desembarco em Manaus, monto a motocicleta em Manaus, aí coloca de novo a motocicleta num navio, vai até o porto de Santos, vai até São Paulo e vende. Esse negócio não é estável.

Eu entendo o argumento que alega que a cobertura vegetal do estado da Amazônia foi mantida por conta da Zona Franca. Nem sei se esse argumento é verdadeiro, mas eu entendo o argumento. Mas independente desse argumento, a gente enquanto sociedade tem que buscar a longo prazo uma saída que seja sustentável e faça sentido.

Não faz sentido manter uma atividade produtiva que é 100% artificial. Não é que é 20% artificial, 10%, 80%. Então a gente tem que pensar uma outra coisa. Tem que achar uma aptidão econômica da região. E tem vários caminhos que a gente tem que perseguir. Acho que, na verdade, a reforma tributária dá um limite. A Zona Franca é isto. E isto mantém o status quo, mantém o que nós temos, que foi congelado, estabelecido e está seguro, mas para frente a gente tem que começar a pensar fora da caixa e procurar outros caminhos. Porque esse caminho a gente está procurando há 60 anos e a coisa não está andando. Ela não anda de pé.

Para além da questão ambiental, a Zona Franca, com a construção desse ambiente atrativo para empresas, gera empregos na região e faturamento, recolhimento de impostos. Ainda assim, o senhor considera que ela não se sustenta a longo prazo? Não é saudável para a economia?

Não sei se você entendeu o que eu disse. O navio anda milhares de quilômetros, desembarca, pega o que está montado, põe de novo no navio, anda milhares de quilômetros, chega no transporte, põe no caminhão e vende. Isso é normal? 

(Foto: Jeiza Russo/A CRÍTICA)

“Não faz sentido manter uma atividade produtiva que é 100% artificial. Não é 20% ou 80%” - Samuel Pessôa

 

É o que gostaria de saber, e, principalmente, se isso gera prejuízo para alguém, de alguma forma. Para o país, para as empresas. 

Você não entende o que é artificial? Eu tenho que te explicar? Não é óbvio que é artificial? Uma criança não entende isso? 

Entendo o que é artificial, mas quero saber se a artificialidade é sustentável do ponto de vista econômico, considerando os resultados em números que ela apresenta. 

Tudo bem, o Brasil pode ficar pobre eternamente. Se eu mantiver todas as distorções que existem no país, e a Zona Franca não é a única, existem inúmeras outras distorções, inclusive ligada à reforma tributária, cassinos, certamente a Zona Franca não é a única distorção, acho que nem é a maior dela. Estou dizendo que se a gente, enquanto sociedade, não conseguir enfrentar as inúmeras distorções que nós temos, a gente vai ficar pobre a vida toda, nunca vai ficar um país rico.

Acho que essa reforma tributária manteve o status quo, mas ao manter o status quo, ela estabelece um tamanho para a Zona Franca, esse é o orçamento da Zona Franca. Acho que é um estímulo para que a sociedade brasileira e os amazonenses procurem uma outra saída, com muito tempo, porque o status quo está garantido, tem nenhuma quebra de contrato, não vai ter nenhuma descontinuidade, não vai ter nenhuma perda de receita, mas a gente tem que procurar outra saída.

Está em discussão no Senado uma Proposta de Emenda à Constituição que promete aumentar a autonomia do Banco Central, transformando em empresa pública. Favoráveis colocam que o BC ficará mais independente em relação ao governo. Críticos dizem que o Banco será mais influenciado pelo mercado. O senhor defende a PEC?

Essa questão de ficar mais suscetível à influência do mercado é uma bobagem. Não vai acontecer isso. Essa independência financeira é para garantir o problema de carreira do setor público. O Banco Central tem um problema. Tem um status de altíssima qualidade, gente que passa em concurso, gente com doutoramento, gente muito boa, e você tem limitações na carreira do setor público para manter essas pessoas no setor. Então, você precisaria criar uma carreira específica para o Banco Central com características tais, que tornasse essa carreira mais atrativa para o Banco Central. É um tema que eu não estudei com profundidade, é complexo, mas eu preferia enfrentar esse problema, que é um problema real, a preocupação do presidente Campos Neto é real, de outra forma.

Não tem nada a ver com o mercado. Nada a ver. É um problema de pessoal. E ele, como presidente do Banco Central, sente isso todo dia. Ele precisa do staff para conduzir a presidência e ele sente o problema de gente boa ir embora e perder capital humano, etc. Mas eu preferia que esse tema fosse tratado no bojo de uma reforma administrativa mais ampla. 

Temos um cenário de melhora econômica apontada pelo governo com dados de redução do desemprego e expectativa maior pelo PIB e, ao mesmo tempo, temos também um cenário de maior gasto público. Primeiro, há uma relação entre uma coisa e outra, e se sim, dá para buscar o equilíbrio das contas e, ao mesmo tempo, alcançar os mesmos indicadores positivos? 

A melhora da economia vem desde o governo anterior. Ela não é fruto deste governo. Se você olhar comparativamente, o Brasil foi um dos que teve os melhores desempenhos na pandemia. A gente foi bem na pandemia do ponto de vista econômico.  O crescimento do Brasil na pandemia, o tombo que a gente tomou e a recuperação, na América Latina, nós fomos um dos melhores casos. A gente foi bem melhor do que a média da América Latina. Então, um certo desempenho brasileiro, acima da média, já vem de algum tempo e não é fruto desse governo. Esse governo tomou algumas decisões que estão ajudando. Agora, esse governo está fazendo alguma coisa que o outro período petista já fez. É o período Dilma 1. O que eles estão fazendo que eles já fizeram? É testar os limites da capacidade produtiva do país. Estímulos de demanda, quando a gente tem uma economia com claros sinais de operar a plena capacidade. É legal você tentar fazer a economia chegar no pleno emprego, mas se, ao chegar no pleno emprego, a gente continuar com incentivos fiscais, tributários, etc, a gente só vai colher inflação e lá na frente vem o ajuste.

(Foto: Jeiza Russo/A CRÍTICA)

“Esse governo está fazendo algo já visto, que é testar os limites da capacidade produtiva do país” - Samuel Pessôa

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