patrimônios abandonados

Nas páginas da história, a voz de Etelvina Garcia

Em entrevista ao A CRÍTICA, historiadora, jornalista e pesquisadora lamenta o abandono dos patrimônios históricos de Manaus e defende o resgate do orgulho e pertencimento manauara

Lucas Motta
online@acritica.com
27/10/2024 às 08:03.
Atualizado em 27/10/2024 às 08:03

Etelvina destaca que a população deve valorizar a cultura das populações tradicionais e os demais entes que com ela compõem a natureza amazônica. (Foto: Daniel Brandão/A Crítica)

Na avenida 7 de Setembro, no Centro de Manaus, o Colégio Amazonense Dom Pedro II, atualmente com 155 anos, resiste como patrimônio histórico em meio às marcas deixadas pela falta de manutenção. 

Fundado há 155 anos, o Colégio Amazonense Dom Pedro II, hoje, carece de manutenção e cuidados. (Foto: Nilton Ricardo/A Crítica)

 A fachada da escola, que originou a Biblioteca Pública do Amazonas e o Clube da Madrugada, além de formar líderes como Gilberto Mestrinho, Jefferson Péres e Thiago de Melo, expõe o abandono. No interior do prédio, as goteiras evidenciam o descaso em dias de chuva.

A fachada do Colégio Amazonense Dom Pedro II serviu de inspiração para a criação da Biblioteca pública e o Clube da Madrugada. (Foto: Nilton Ricardo/Freelancer)

 Outro exemplo de descaso é o Grupo Escolar Nilo Peçanha, na avenida Joaquim Nabuco. Fundado em 1895, o prédio já abrigou a reitoria da Universidade Livre de Manaus, que, fundada em 1909, tornou-se a Universidade Federal do Amazonas (UFAM), a primeira universidade do Brasil.

O Grupo Escolar Nilo Peçanha abrigou a Universidade Livre de Manaus, que depois se tornaria a Universidade Federal do Amazonas. (Foto: Nilton Ricardo/A Crítica)

Apesar de seu valor histórico e acadêmico, o local foi abandonado e, em janeiro de 2023, chegou a ser invadido e saqueado, perdendo parte do piso original de madeira.  

Em completo abandono, instituição foi saqueada e está bastante depredada. (Foto: Nilton Ricardo/A Crítica)

 A historiadora, jornalista e pesquisadora Etelvina Garcia, ao comentar os 355 anos de Manaus, celebrado no último dia 24 de outubro, lamenta o destino de instituições que são parte da identidade manauara. Para ela, o abandono é fruto de décadas de descaso, onde outras conquistas da cidade tomaram o lugar do patrimônio cultural.

"Nós, minha geração, somos os grandes culpados. Fomos omissos e permitimos que as gerações que nos sucederam ficassem anestesiadas por Manaus ter ganhado um grande aeroporto, à época o mais moderno do Brasil, o Eduardo Gomes, e os melhores hotéis do país antigamente", afirma.

Falta de Identidade

Etelvina buscou apoio do Governo do Estado para evitar que patrimônios históricos fossem perdidos e a história esquecida, mas, segundo ela, sem resposta. Para a historiadora, muitos manauaras já não se enxergam como ‘filhos desta terra’, o que seria evidenciado pelo abandono dos monumentos históricos. 

Etelvina Garcia ressalta que o abandono de prédios históricos é fruto de décadas de descaso, onde outras conquistas da cidade tomaram o lugar do patrimônio cultural. (Foto: Daniel Brandão/A Crítica)

 Comparando o sentimento atual com o passado, ela conta que, no passado, o sentimento de pertencimento era evidente em ações de cidadãos. Um exemplo disso foi a criação da Fundação Universidade do Amazonas em 1962.

Embora a constituição federal da época não permitisse duas faculdades iguais na cidade, houve uma mobilização para garantir o funcionamento da nova faculdade de Ciências Econômicas, que só foi autorizada após a criação de uma biblioteca improvisada com livros dos próprios professores.

“Quando estava tudo prontinho para o MEC autorizar a realização do exame vestibular, o fiscal do ministério disse: ‘Aqui no projeto de vocês não aparece uma biblioteca’. Sabe o que os professores da faculdade fizeram? Todos eles tiraram seus livros de casa e colocaram no salão [da faculdade], chamaram o fiscal, e ele enfim liberou! Era isso, era Manaus que pensava em todos”, relata.

Outro exemplo marcante foi o incêndio que destruiu a Biblioteca Pública do Amazonas em 1945, o qual Etelvina foi testemunha e pôde ver a fumaça que saía do prédio, localizado na rua Barroso, no Centro de Manaus. Na época, os manauaras se uniram para reconstruir o acervo, doando livros de suas coleções pessoais. “Cada família tirava, comovidamente, uma unidade que lhe faria falta, mas serviria a todos. Era o sentido do pertencimento, que sumiu", lembra Etelvina. 

Historiadora relata que o abandono é fruto de décadas de descaso, onde outras conquistas da cidade tomaram o lugar do patrimônio cultural. (Nilton Ricardo/Freelancer)

Culpa da Zona Franca de Manaus?

 Muitos atribuem o crescimento desordenado de Manaus à Zona Franca, mas Etelvina discorda. Segundo ela, o Polo Industrial foi uma força econômica vital, que trouxe desenvolvimento e novas oportunidades para a cidade.

Ela menciona Nathan Xavier de Albuquerque, empresário amajzonense que, mesmo em tempos de crise, acreditou no potencial do Polo Industrial, formando uma sociedade com investidores japoneses que levou ao nascimento da Moto Honda da Amazônia, que teve o nome em alusão à Moto Importadora, de Nathan. 

“Nós tínhamos outros empreendedores qualificados, mas quem decidiu ficar e marcar presença, colocar o seu investimento, arriscar em um projeto de grande envergadura? A Moto Honda nasceu do sonho de um empreendedor amazonense. O Polo Industrial é pujante, hoje estruturado de tal forma, de tal nível, que é capaz de competir de modo que possa colocar seus produtos em qualquer mercado”, comentou.

Qual Deve Ser a Manaus do Futuro?

Etelvina espera que as novas gerações voltem a sentir orgulho e pertencimento pela cidade. Para isso, ela acredita que a cidade deve ser amada e cuidada todos os dias do ano, com governantes, empresários e cidadãos unidos para fortalecer a economia e proteger o patrimônio. 

“Nós precisamos de uma cidade que seja amada 365 dias de cada ano, e mais: que seja respeitada, pensada no sentido de fortalecer as estruturas da cidade e da economia. Precisamos também formar pensadores que coloquem seu talento em função de uma corrente forte com governantes, empresários, estudantes, em busca de coisas que se perenizem”, defendeu.

Etelvina faz um apelo para que a população possa olhar para si mesma e entender que todos os processos que levam a esse futuro estão baseados na identidade do que é ser manauara e amazônida.

Há de se “deixar o desejo pelo garimpo predatório, que não tem nada a ver conosco”, e focar no equilíbrio do meio ambiente e implantar atividades sustentáveis que estão à nossa frente. Contar com a presença das duas universidades públicas que temos (Ufam e UEA) para dar aos ribeirinhos e indígenas a oportunidade de criar soluções.

“É assim que vamos criar a sociedade que queremos para o futuro: inteligente, criativa, solidária! Estabelecendo uma composição cada vez mais forte entre educação, ciência, tecnologia e inovação. Valorizando a cultura das nossas populações tradicionais e os demais entes que com ela compõem a natureza amazônica. Assim, criamos uma sociedade que não vai permitir nunca que imóveis históricos sejam abandonados como está o Colégio Amazonense, como está o Grupo Escolar Nilo Peçanha”, finalizou.

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