No Amazonas

Caso turco em São Gabriel é só a ponta do ‘iceberg’ do tráfico humano

Estado lidera em ranking com estados da Região Norte sobre casos de tráfico humano registrados entre 2010 e 2020

Waldick Júnior
waldick@acritica.com
13/05/2023 às 08:50.
Atualizado em 13/05/2023 às 09:57

Município amazonense na fronteira com a Colômbia e Venezuela registra, há décadas, casos de tráfico humano, com indígenas no centro das ocorrências (Foto: Divulgação)

Na última década (2010-2020), o Amazonas foi o estado da Região Norte que registrou mais casos de tráfico humano, pelo menos 60. Os dados são do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do governo federal. Apesar do número já ser preocupante, especialistas ouvidos por A CRÍTICA ressaltam que ainda há muita subnotificação. 

No fim de abril, uma reportagem do jornal Metrópoles relatou a atuação de um grupo islâmico em São Gabriel da Cachoeira (AM), que retirava crianças e adolescentes do município com a promessa de estudos na Turquia. 

Segundo o site, foram pelo menos cinco indígenas enviados ao país árabe até que uma operação conjunta de resgate fosse realizada pela Polícia Federal, conselhos tutelares e Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

“Falta muito para a gente dizer que tomamos uma atitude à altura. A gente não sabe nem o tamanho do problema. Foi positivo descobrir isso [o caso dos jovens indígenas], porque deve ser só a ponta do iceberg. A gente vai agora, todas as instituições que tiveram acesso às informações, e a sociedade civil também precisa se responsabilizar pela sua parcela, arregaçar as mangas e tomar as providências necessárias”, afirma a presidente da Comissão de Direito de Família e Adoção da OAB-AM, Luiza Simonetti.

Ainda de acordo com os dados o Sinan, na última década, a cada 100 casos de tráfico humano no país, cinco foram no Amazonas. A estatística consolidou o estado como oitavo do país a registrar mais ocorrências do tipo. O primeiro lugar ficou com São Paulo (311 casos).

Segundo definição internacional do Protocolo de Palermo, adotado desde o ano 2000 em Convenção das Nações Unidas – da qual o Brasil é parte –o tráfico humano é o “recrutamento, transporte, transferência alojamento ou acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação”. 

Vulnerabilidade

Estudos apontam que a promessa de oportunidades de estudo ou emprego é uma das maneiras mais comuns de início do processo de tráfico humano. Metade (51%) dos casos em todo o mundo tem como fator a vulnerabilidade econômica, de acordo com o Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC). 

Em São Gabriel da Cachoeira, de onde a associação islâmica retirou os jovens, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) era 0,609 em 2010, de acordo com o último censo do IBGE. Quanto mais próximo do número 1, melhor é a qualidade de vida da população. 

Além da vulnerabilidade econômica, a atuação do poder público na região tem sido insuficiente para coibir o problema. A avaliação é da defensora pública Isabela Sales, que atua no polo da DPE-AM no Alto Rio Negro. 

“Temos informações de diversos casos de adoções irregulares que foram feitas na região. Falando de todo o Alto Rio Negro, temos uma deficiência crônica de fortalecimento da rede de proteção de crianças e adolescentes”, conta.

Tentamos contato com o conselho tutelar de São Gabriel da Cachoeira e com a Secretaria de Estado de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania (Sejusc). Não obtivemos retorno.

Comentário

Isabela Sales, defensora pública

Não temos um conselho tutelar com estrutura suficiente para acompanhamento desses casos. Falta até mesmo do Poder Judiciário, do Ministério Público, que os processos sejam sistematizados. Hoje já existem sistemas de cadastros de adotantes e adotados e, principalmente, não existe uma estrutura de acolhimento que possa servir como abrigo para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade e isso faz com que esse público pareça estar à disposição de quem queira fazer uma ação ou então incidir nessa mobilidade de retirada de pessoas da região. É preciso fortalecer tambem a presença de instituições que fazem investigação,  principalmente da Polícia Federal,    que aqui temos uma fronteira terrestre significativa e muitas situações ficam desguarnecidas desse serviço de investigação.

Saiba mais

A ‘aculturação direta’, conceito que define a perda de uma cultura por meio de processos como a colonização, é outro ponto que acentua casos de tráfico humano. Em São Gabriel da Cachoeira, a população convive há décadas com grupos religiosos que catequizam indígenas. Tentamos contato com a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) para tratar disso, mas não conseguimos retorno até o fechamento do texto.

Amom quer CPI do tráfico humano

O deputado federal Amom Mandel (Cidadania-AM) anunciou uma proposta de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar casos de tráfico humano e exploração sexual de menores no Amazonas.

“Gostaríamos de fazer essa CPI para investigar eventuais omissões dos órgãos, uma vez que todos eles já sabem o que está acontecendo há décadas”, pontuou.

O parlamentar esteve presente em uma audiência pública realizada na quarta-feira, na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, na Câmara dos Deputados.

Ele criticou a falta de cumprimento de legislações e instrumentos jurídicos  em casos similares ao registrado em São Gabriel da Cachoeira.

“A exemplo do provimento 36 do Conselho Nacional de Justiça, que estabelece a obrigação de varas especializadas [nos tribunais de justiça] para esses casos”, disse.

Ele também pediu apoio de parlamentares presentes na audiência para nacionalizar o Projeto de Lei 373/2023, que corre na Assembleia Legislativa do Amazonas. O PL propõe colher digital do bebê e da mãe logo após o parto nas maternidades, e no cartório ao registrar a criança, buscando minimizar problemas de trocas de bebês e até de adoções ilegais.

Investigações estão em andamento

Em audiência pública que tratou do caso amazonense, na quarta-feira, a delegada da PF que trata da investigação, Letícia Prado, afirmou que o caso está sendo apurado.

“O inquérito continua sob responsabilidade da Polícia Federal, inquérito o qual eu presido. Continuamos realizando diligências, ouvindo pessoas”, disse.

Segundo ela, outros seis brasileiros seguem na Turquia, enviados pelo grupo islâmico. 

Esteve presente no encontro a  diretora de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável da Funai, Lúcia Alberta. Ela anunciou uma série de ações que pretendem ser tomadas em São Gabriel da Cachoeira. 

“A Funai e o Ministério dos Povos Indígenas estão organizando uma visita ao município para ver como está o retorno dessas crianças”, pontuou.

Ela também disse que a Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente está organizando uma reunião de trabalho com diversos órgãos do  governo para pensar políticas para essa população vulnerável no município amazonense.

“No dia 3 de julho vamos realizar um evento em São Gabriel da Cachoeira, levando essas instituições, para junto se construir uma política publicada adequada para aqueles jovens e adolescentes indígenas”, afirmou.

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