Estado lidera em ranking com estados da Região Norte sobre casos de tráfico humano registrados entre 2010 e 2020
Município amazonense na fronteira com a Colômbia e Venezuela registra, há décadas, casos de tráfico humano, com indígenas no centro das ocorrências (Foto: Divulgação)
Na última década (2010-2020), o Amazonas foi o estado da Região Norte que registrou mais casos de tráfico humano, pelo menos 60. Os dados são do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do governo federal. Apesar do número já ser preocupante, especialistas ouvidos por A CRÍTICA ressaltam que ainda há muita subnotificação.
No fim de abril, uma reportagem do jornal Metrópoles relatou a atuação de um grupo islâmico em São Gabriel da Cachoeira (AM), que retirava crianças e adolescentes do município com a promessa de estudos na Turquia.
Segundo o site, foram pelo menos cinco indígenas enviados ao país árabe até que uma operação conjunta de resgate fosse realizada pela Polícia Federal, conselhos tutelares e Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
Ainda de acordo com os dados o Sinan, na última década, a cada 100 casos de tráfico humano no país, cinco foram no Amazonas. A estatística consolidou o estado como oitavo do país a registrar mais ocorrências do tipo. O primeiro lugar ficou com São Paulo (311 casos).
Segundo definição internacional do Protocolo de Palermo, adotado desde o ano 2000 em Convenção das Nações Unidas – da qual o Brasil é parte –o tráfico humano é o “recrutamento, transporte, transferência alojamento ou acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação”.
Estudos apontam que a promessa de oportunidades de estudo ou emprego é uma das maneiras mais comuns de início do processo de tráfico humano. Metade (51%) dos casos em todo o mundo tem como fator a vulnerabilidade econômica, de acordo com o Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC).
Em São Gabriel da Cachoeira, de onde a associação islâmica retirou os jovens, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) era 0,609 em 2010, de acordo com o último censo do IBGE. Quanto mais próximo do número 1, melhor é a qualidade de vida da população.
Além da vulnerabilidade econômica, a atuação do poder público na região tem sido insuficiente para coibir o problema. A avaliação é da defensora pública Isabela Sales, que atua no polo da DPE-AM no Alto Rio Negro.
“Temos informações de diversos casos de adoções irregulares que foram feitas na região. Falando de todo o Alto Rio Negro, temos uma deficiência crônica de fortalecimento da rede de proteção de crianças e adolescentes”, conta.
Tentamos contato com o conselho tutelar de São Gabriel da Cachoeira e com a Secretaria de Estado de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania (Sejusc). Não obtivemos retorno.
Comentário
Isabela Sales, defensora pública
A ‘aculturação direta’, conceito que define a perda de uma cultura por meio de processos como a colonização, é outro ponto que acentua casos de tráfico humano. Em São Gabriel da Cachoeira, a população convive há décadas com grupos religiosos que catequizam indígenas. Tentamos contato com a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) para tratar disso, mas não conseguimos retorno até o fechamento do texto.
O deputado federal Amom Mandel (Cidadania-AM) anunciou uma proposta de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar casos de tráfico humano e exploração sexual de menores no Amazonas.
O parlamentar esteve presente em uma audiência pública realizada na quarta-feira, na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, na Câmara dos Deputados.
Ele criticou a falta de cumprimento de legislações e instrumentos jurídicos em casos similares ao registrado em São Gabriel da Cachoeira.
Ele também pediu apoio de parlamentares presentes na audiência para nacionalizar o Projeto de Lei 373/2023, que corre na Assembleia Legislativa do Amazonas. O PL propõe colher digital do bebê e da mãe logo após o parto nas maternidades, e no cartório ao registrar a criança, buscando minimizar problemas de trocas de bebês e até de adoções ilegais.
Em audiência pública que tratou do caso amazonense, na quarta-feira, a delegada da PF que trata da investigação, Letícia Prado, afirmou que o caso está sendo apurado.
“O inquérito continua sob responsabilidade da Polícia Federal, inquérito o qual eu presido. Continuamos realizando diligências, ouvindo pessoas”, disse.
Segundo ela, outros seis brasileiros seguem na Turquia, enviados pelo grupo islâmico.
Esteve presente no encontro a diretora de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável da Funai, Lúcia Alberta. Ela anunciou uma série de ações que pretendem ser tomadas em São Gabriel da Cachoeira.
Ela também disse que a Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente está organizando uma reunião de trabalho com diversos órgãos do governo para pensar políticas para essa população vulnerável no município amazonense.
“No dia 3 de julho vamos realizar um evento em São Gabriel da Cachoeira, levando essas instituições, para junto se construir uma política publicada adequada para aqueles jovens e adolescentes indígenas”, afirmou.