Ministério da Gestão e Inovação defendeu legalidade do concurso e explicou em nota o funcionamento das Comissões de Heteroidentificação no CNU
Silvia Pacheco, Tayson Retondano e Roberta Freire relatam desafios e frustrações com o processo de heteroidentificação do CNU, que deixou amazonenses fora das cotas raciais (Fotos: Arquivos pessoais)
O Concurso Nacional Unificado (CNU), conhecido popularmente como o "Enem dos Concursos", prometia ser uma oportunidade de emprego e estabilidade econômica para muitos amazonenses. No entanto, após a divulgação dos resultados da avaliação racial conduzida pela Fundação Cesgranrio, responsável pelo certame, candidatos que se autodeclararam negros ou pardos enfrentaram uma dura realidade: a recusa no reconhecimento de sua elegibilidade para as cotas destinadas a esses grupos.
Silvia Katherine Pacheco, 36 anos, pesquisadora e mestre em Antropologia, foi uma das candidatas que buscou uma das cinco vagas no Bloco 5 – Educação, Saúde, Desenvolvimento Social e Direitos Humanos. Motivada pela estabilidade profissional, Silvia dedicou-se intensamente aos estudos. “Muitas renúncias em função dos estudos. Foram longas horas de dedicação diária”, comentou a pesquisadora.
Outro candidato amazonense, Tayson Retondano, servidor público de 37 anos e bacharel em Design, também concorreu ao cargo de Auditor-Fiscal do Trabalho. Ele destacou que tanto a natureza do cargo quanto a remuneração atrativa o incentivaram a se inscrever. "É uma carreira de Estado muito nobre e importante, que fiscaliza as relações de trabalho, segurança e saúde do trabalhador. Quando saiu a autorização e o número de vagas, fiquei muito motivado", afirmou.
Tayson relatou uma intensa rotina de estudos, iniciada antes mesmo da oficialização do concurso. “Estudava cerca de 3 horas líquidas por dia enquanto trabalhava e fazia faculdade de Direito à noite. Após o edital, intensifiquei os estudos para 6 horas diárias. Usei todas as minhas férias e folgas, além de ter trancado a faculdade no primeiro semestre de 2024”, revelou.
Já Roberta Thaiana da Silva Freire, 33 anos, advogada, inscreveu-se no CNU em meio a uma tragédia pessoal: o marido sofreu um grave acidente doméstico e ficou paraplégico.
“Estudava em todas as oportunidades, assistindo a aulas em vídeo e áudio enquanto realizava atividades como lavar louça, preparar refeições, limpar a casa e ajudar meu marido”, descreveu.
Os candidatos que se declararam pretos ou pardos foram convocados para a avaliação da banca de heteroidentificação, um processo que, segundo relatos, foi desconfortável e pouco acolhedor. Silvia descreveu o ambiente como “hostil”.
Tayson, que já havia passado por outras bancas de heteroidentificação, também achou o processo estranho e desumanizador. “Os avaliadores não me dirigiram a palavra, não houve sequer um ‘boa tarde’. Apenas me olharam enquanto eu permanecia em pé. Senti-me invadido, como se fosse um suspeito em reconhecimento criminal”, relatou.
Roberta passou pelo mesmo processo e, como os outros candidatos, recebeu no portal do governo federal, no dia 17 de janeiro, o status de “não enquadrada” sem qualquer justificativa.
Para Tayson, a negativa foi um choque. “Sempre fui reconhecido como negro/pardo, com traços evidentes como cabelo crespo e pele escura. Ocupo um cargo obtido por meio de política de cotas desde 2020. Nunca imaginei que precisaria me preocupar com isso”, afirmou.
Silvia, por sua vez, questionou a ausência de critérios claros e pediu atenção do Ministério Público Federal.
Tayson também criticou a falta de diversidade entre os avaliadores. “Essas bancas deveriam evitar fraudes, não promover um show de seleção racial. Não me lembro de nenhum avaliador com traços mais evidentes que os meus”, observou.
Roberta destacou a pressão estética sofrida por pessoas de ascendência negra no Brasil.
Diante das negativas, os candidatos articulam ações para recorrer das decisões e denunciar o que consideram ser “racismo institucional”. “Estamos organizados para levar a questão ao Ministério Público. Não podemos permitir que isso continue”, concluiu Roberta.
A equipe de reportagem solicitou um posicionamento do Ministério da Gestão e Inovação (MGI), do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC) e do Ministério da Igualdade Racial (MIR) sobre os relatos dos candidatos. Em resposta aos questionamentos, o MGI enviou uma nota esclarecendo o funcionamento das Comissões de Heteroidentificação no CNU. Abaixo, segue a íntegra do posicionamento:
O Ministério da Gestão e da Inovação (MGI) informa que as Comissões de Heteroidentificação do CPNU foram organizadas pela Fundação Cesgranrio, banca responsável pelo certame.
Todo o procedimento seguiu o regramento legal pertinente, descrito no item 3.4 e subitens dos editais, que estabelecem que os candidatos que desejam concorrer às vagas reservadas a pessoas negras devem passar pelo procedimento de heteroidentificação, conforme previsto na Instrução Normativa MGI n° 23/2023.
Esses normativos seguem o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) que reconhece as bancas de heteroidentificação como parte essencial do processo seletivo (entendimento da ADC/STF 41/2017 referente à Lei de Cotas (Lei n.º 12.711/2012).
Assim, de acordo com a Instrução Normativa MGI n° 23/2023, as Comissões de Heteroidentificação do CPNU utilizaram exclusivamente o critério fenotípico para aferição da condição declarada pelo candidato de pessoa negra (preta ou parda), não sendo aceitos registros, declarações ou documentos, seja do próprio candidato ou de ancestrais, como aptos a comprovar o direito à cota.
Os procedimentos de heteroidentificação foram sendo realizados nas 228 cidades onde ocorreu a aplicação de realização do CPNU. A Comissão de Heteroidentificação é composta por cinco integrantes e seus suplentes, garantida a diversidade em sua composição como gênero, cor e origem regional, sempre que possível. A Comissão é composta por pessoas de reputação ilibada; residentes no Brasil; que tenham participado de oficina ou curso sobre a temática da promoção da igualdade racial e do enfrentamento ao racismo; e preferencialmente experientes na temática da promoção da igualdade racial e do enfrentamento ao racismo.
Por sua vez, os recursos às decisões das Comissões de Heteroidentificação foram analisados por uma Comissão Recursal composta por três membros distintos dos membros da Comissão de Heteroidentificação. Os recursos foram avaliados pela Comissão Recursal considerando a filmagem do procedimento de heteroidentificação, o conteúdo do recurso elaborado pelo candidato e o parecer emitido pela comissão de banca de heteroidentificação.
Ainda conforme a IN n° 23/2023 acolhida no Edital do CPNU, o teor do parecer motivado da Comissão de Heteroidentificação será de acesso restrito, seguindo o disposto na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (art. 31 da Lei nº 12.527, de 18/11/2011).
Vale destacar que a IN 23, mantem resguardado o sigilo dos nomes das pessoas que integram a comissão de heteroidentificação, podendo ser disponibilizados aos órgãos de controle interno e externo, se requeridos.
Os cargos e currículos de todos os membros estão disponíveis no link: https://www.gov.br/gestao/pt-br/concursonacional/composicao-das-comissoes-de-heteroidentificacao-de-verificacao-documental-dos-indigenas-e-comites-recursais/