Conhecimento científico

‘Outros povos têm suas ciências’: Justino Rezende defende o reconhecimento do Saber Indígena

Em entrevista ao A CRÍTICA, Justino Rezende, antropólogo do povo Utãpinopona-Tuyuka, detalhou os desafios e avanços na construção do 1º artigo científico publicado por indígenas brasileiros na revista Science

Amariles Gama
online@acritica.com
21/01/2025 às 16:50.
Atualizado em 21/01/2025 às 16:53

(Foto: Reprodução)

O recente reconhecimento do saber indígena pela renomada revista acadêmica Science representa um marco histórico para os povos originários. Em entrevista ao A CRÍTICA, Justino Rezende, antropólogo do povo Utãpinopona-Tuyuka, detalhou os desafios e avanços na construção do artigo "Indigenizando as Ciências da Conservação para uma Amazônia Sustentável", a primeira publicação de cientistas indígenas brasileiros na revista norte-americana.

Rezende, que assina o artigo com um grupo de 14 cientistas brasileiros, entre eles cinco indígenas, explica que o texto busca mostrar à ciência ocidental que existem outras formas de compreender a realidade ambiental, baseadas nos saberes indígenas transmitidos ao longo de milhares de anos.

Ao comentar sobre o trabalho reconhecido pela revista norte-americana, ele destacou a interconexão entre humanos, florestas, rios, constelações e demais elementos da natureza, que formam uma rede interligada e viva, regida por cerimônias, respeito e reciprocidade.

“Eu penso que a nossa intencionalidade, com outros pesquisadores no Brasil, é justamente contribuir com nossas formas de compreender as nossas realidades. Nós também acompanhamos todas as transformações, as realidades de degradação da terra, uso abusivo das terras, dos territórios. Por isso se vê também essa mudança climática, os rios, a seca ou, algumas vezes, muita chuva. Em outros lugares, grandes problemas de desmoronamentos e enchentes”, comentou Rezende.

(Foto: Reprodução)

“Nossos avós já falavam isso: que, se a gente não respeitar, não pedir permissão, não fazer as cerimônias, pedir licença, agradecer e praticar a reciprocidade, tudo poderia acontecer, como esses desastres que a gente vê hoje”, completou o antropólogo indígena, ao destacar a importância de integrar conhecimentos tradicionais e científicos para o manejo sustentável dos recursos naturais.

Para Rezende, a publicação do artigo também é uma contribuição estratégica para políticas de conservação, podendo influenciar tanto decisões locais quanto acordos internacionais. Apesar de considerar uma contribuição "modesta", ele acredita que trará importantes reflexões.

“O mucuim que tem na floresta é um bicho pequenino, mas, quando ele pega na gente, causa muita coceira, né? Mesmo sendo pequeno, a gente brinca: imagine se ele fosse grande, quantos danos faria na pessoa. Esse é o nosso artigo também. Não é grande, não abrange todos os conhecimentos dos povos indígenas, mas é algo que pode provocar outras reflexões”, brincou Rezende.

Desafios no processo de publicação

O artigo, construído ao longo de dois anos, envolveu o esforço coletivo de cinco autores indígenas. Além de Rezende, assinam o trabalho os pesquisadores indígenas João Paulo de Lima Barreto, Silvio Sanches Barreto, Francy Baniwa e Clarinda Sateré-Mawé. Também são autores os não indígenas Fábio Zuker, Ane Alencar, Miqueias Mugge, Rodrigo Simon de Moraes, Agustín Fuentes, Marina Hirota, Carlos Fausto, Carolina Levis e João Biehl.

(Foto: Reprodução)

Rezende conta que, durante o processo, os autores enfrentaram barreiras culturais e acadêmicas significativas, especialmente no que se refere à validação de conhecimentos indígenas como ciência. Após a primeira submissão, eles receberam questionamentos extensos, inclusive sobre a relação entre espiritualidade e ciência em rituais e práticas indígenas.

“Diversos questionamentos, dúvidas, pedidos de esclarecimento sobre termos indígenas que nós estávamos usando. Essa foi a questão mais desafiadora. Eu penso que era por serem questões indígenas mesmo, que, na maioria das vezes, a ciência ocidental tem dificuldade de entender que outros povos têm suas ciências, com suas formas de organização, conhecimentos, práticas culturais, cerimoniais e sociais”, disse.

Ele confessa que a equipe enfrentou momentos de desânimo, especialmente quando a legitimidade de seus conhecimentos era colocada em dúvida. Mas, ao final, Rezende reconheceu que os questionamentos recebidos foram fundamentais para o amadurecimento do grupo, permitindo reflexões mais profundas e esclarecedoras.

Indígenas no campo científico

Questionado sobre o que considera essencial para que os indígenas sejam incluídos como protagonistas no campo acadêmico e cada vez mais tenham seus conhecimentos valorizados mundialmente, Rezende destaca a necessidade de mudanças estruturais e culturais.

Ele afirma que as universidades precisam reconhecer que os povos indígenas chegam com saberes específicos, não apenas para aprender, mas também para contribuir. Ele sugere que os cursos de graduação, mestrado e doutorado incentivem a escrita nas línguas indígenas, sempre que possível, e que professores estejam abertos a ouvir e trabalhar com esses saberes.

“Precisa melhorar a política de acesso aos cursos, não só de acesso, mas de permanência e inclusão nos cursos. Muitas vezes, os indígenas entram, mas não estão continuando os cursos. Às vezes, não têm incentivo, faltam professores que sejam abertos para poder contribuir com o seu crescimento como cientistas”, disse Rezende.

Apesar das dificuldades, Rezende acredita que a inclusão de cada vez mais indígenas no campo científico não é uma meta impossível. Com políticas de acesso, permanência e inclusão, além de esforços conjuntos entre indígenas e não indígenas, é possível expandir o alcance dos conhecimentos ancestrais, garantindo o seu reconhecimento em revistas renomadas como a Science.

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