Queimadas

Mudanças climáticas aumentaram condições favoráveis a incêndios florestais sem precedentes

Relatório internacional com a participação de três cientistas brasileiros mostra que esses incêndios foram pelo menos três vezes mais prováveis no Canadá e 20 vezes na Amazônia; estudo conclui que emissões globais de carbono ficaram 16% acima da média

Agência FAPESP
15/08/2024 às 09:54.
Atualizado em 15/08/2024 às 09:54

(Foto: Agência Brasil)

As mudanças climáticas aumentaram em pelo menos três vezes as chances de ocorrência das condições favoráveis para incêndios florestais sem precedentes no Canadá e em até 20 vezes na Amazônia Ocidental entre março de 2023 e fevereiro de 2024, elevando as emissões de gases de efeito estufa, causando devastação ambiental e provocando mortes de moradores.

Pesquisa internacional divulgada nesta quarta-feira (14/08) conclui que, apesar de a área global queimada ter sido próxima à média de anos anteriores – cerca de 3,9 milhões de quilômetros quadrados, o que corresponde a mais do que o território da Índia –, as emissões por incêndios no mundo ficaram 16% acima da média. Totalizaram 8,6 bilhões de toneladas de dióxido de carbono (Gt CO2), ou seja, a sétima mais alta desde 2003.

O primeiro relatório State of Wildfires, que passará a ser anual, foi publicado na revista científica Earth System Science Data. Analisa os incêndios florestais (com vegetações/ecossistemas diversos), identificando eventos extremos, e avalia as causas, previsibilidade e atribuição desses eventos às mudanças climáticas e ao uso da terra, apontando riscos futuros sob diferentes cenários.

Para isso, foram desenvolvidas ferramentas e reunidos dados de todos os países, com uso de inteligência artificial, visando compreender e prever incêndios extremos para fornecer informações práticas a tomadores de decisão e à sociedade. Um painel com os resultados está disponível on-line.

De acordo com a pesquisa, a “temporada” de incêndios na Amazônia Ocidental (que inclui os Estados do Amazonas, Acre, Roraima e Rondônia) foi impulsionada por secas prolongadas ligadas ao El Niño. Essas secas aliadas às condições meteorológicas explicaram 68% dos incêndios, mas ações antrópicas, como desmatamento, agricultura e fragmentação de paisagens naturais, também tiveram influência. De maneira geral pelo mundo, as causas que levaram aos incêndios foram múltiplas.

Coliderado pela Universidade de East Anglia, pelo Met Office, pelo Centro de Ecologia e Hidrologia do Reino Unido (UKCEH) e o Centro Europeu de Previsões Meteorológicas de Médio Prazo (ECMWF), o estudo teve a participação de três brasileiros entre os 44 pesquisadores.

“A ideia foi criar um panorama global por meio da reunião de especialistas regionais para destacar a situação do fogo no mundo. Foi importante reunir essa expertise regional, com um time diverso tanto de países como de áreas de conhecimento. Outro ponto interessante é a atualização rápida dos dados do ano anterior, com um desenvolvimento contínuo dos modelos. Com isso, esperamos ter a cada ano previsões e diagnósticos mais robustos para acesso não só da pesquisa como para pensar em estratégias visando lidar com os impactos”, explica à Agência FAPESP Maria Lucia Ferreira Barbosa, uma das brasileiras que assinam o artigo. Ela cursou o doutorado no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e atualmente está na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

Pesquisadora no Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) e também autora do trabalho, a bióloga Liana Anderson destaca a importância de “entender o passado e o presente para pensar formas de prevenção para o futuro”. “Olhando as regiões ao longo do tempo é possível identificar novos pontos de atenção. Temos uma base de dados aberta, pública, acessível e on-line, permitindo que diferentes tipos de pesquisa sejam realizados para responder a uma infinidade de questões. Precisamos entender o que o fogo significa em termos de barreiras para atingirmos as metas do desenvolvimento socioeconômico e ambientais no Brasil e as consequências das queimadas na perda de biodiversidade, no empobrecimento da população e na segurança alimentar, por exemplo.”

Ao tratar da América do Sul na pesquisa, o grupo aponta que, no geral, a região teve uma extensão de incêndios pouco abaixo da média. Mas o Estado do Amazonas foi uma exceção, com número de incêndios atingindo níveis recordes devido à seca histórica e impactando severamente a qualidade do ar.

Cidade mais populosa da Amazônia, Manaus ficou com a segunda pior qualidade de ar no mundo em outubro de 2023, expondo mais de 2 milhões de moradores. Os cientistas citam que o acontecimento foi tão grave que, em novembro de 2023, o Ministério Público Federal abriu ação civil contra o Estado do Amazonas, exigindo provas de que havia investimento em prevenção e combate a incêndios, conforme previsto no “Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento e Incêndios”. Neste mês de agosto, Manaus voltou a ser atingida pela fumaça das queimadas.

Também foram registrados eventos extremos na Venezuela e em partes da Bolívia e do Peru, sob impactos da seca. No Chile, o incêndio em Valparaíso, em fevereiro de 2024, resultou em pelo menos 131 mortes e destruição generalizada de propriedades.

O grupo usou uma combinação de dados de observações globais por satélite, modelos e insights de especialistas regionais. “Avaliamos um conjunto global de dados que geram uma série de métricas do fogo como, por exemplo, a data em que ocorreu, o perímetro, o ponto de ignição. A ideia foi verificar se esse dataset estava ou não sendo bom para representar os eventos extremos. Produzimos figuras e métricas para eventos na Grécia, em Valparaíso (no Chile), no Canadá, na Austrália e conseguimos mostrar que ele funciona para esse objetivo”, completa o especialista em sensoriamento remoto e também um dos autores do artigo Guilherme Mataveli, da Divisão de Observação da Terra e Geoinformática do Inpe.

Mataveli antecipa que para a temporada 2024-2025 o Pantanal deve aparecer com destaque pelas ocorrências que estão sendo registradas. De janeiro a julho deste ano, o bioma teve 4.756 focos, o maior desde 1998, início da série histórica, segundo dados do Inpe.

O pesquisador fez recentemente parte de seu pós-doutorado sobre emissão de gases de efeito estufa por queimadas no Tyndall Centre for Climate Change Research, da Universidade de East Anglia, sob supervisão do professor Matthew Jones, um dos autores correspondentes da pesquisa. Mataveli recebeu apoio da FAPESP.

“No ano passado, vimos incêndios florestais matando pessoas, destruindo propriedades e infraestruturas, causando evacuações em massa, ameaçando meios de subsistência e danificando ecossistemas vitais. Os incêndios florestais estão se tornando mais frequentes e intensos à medida que o clima esquenta. Tanto a sociedade como o meio ambiente estão sofrendo as consequências”, afirma Jones, por meio de comunicado de imprensa.

 Temporada extrema

 Além de catalogar incêndios de alto impacto globalmente, o estudo se concentrou em explicar as causas em três regiões: Canadá, Amazônia Ocidental e Grécia. Nelas, o clima propício a incêndios – caracterizado por condições quentes e secas que promovem o fogo – mudou significativamente se comparado ao mundo sem mudanças climáticas.

Com isso, os pesquisadores chegaram à conclusão de que as mudanças climáticas ampliaram o risco de ocorrência das condições favoráveis para os incêndios em 2023-24 em pelo menos três vezes no Canadá, 20 vezes na Amazônia e duas vezes na Grécia, país que voltou a sofrer consequências neste mês com ordens de evacuação nas imediações de Atenas e pedido de ajuda à União Europeia para conter o fogo.

“Se não pensarmos de forma mais realista, atualizando os modelos, não vamos conseguir nos preparar da maneira adequada para o tamanho dos eventos que vão nos atingir. Os eventos e impactos estão se manifestando com uma magnitude maior do que havíamos antecipado”, avalia Anderson.

Em relação às emissões globais de carbono dos incêndios, as florestas boreais canadenses contribuíram com mais de nove vezes em relação à média, representando quase um quarto das emissões globais. Por outro lado, houve redução das emissões nas savanas africanas.

Usando dados de previsão climática, os cientistas apontam que houve sinais dos incêndios no Canadá com um a dois meses de antecedência, enquanto os eventos na Grécia e na Amazônia tiveram horizontes de previsibilidade mais curtos.

 Futuro

 Os modelos climáticos usados no relatório sugerem que a frequência e a intensidade dos incêndios florestais extremos aumentarão até o fim do século, particularmente em cenários onde as emissões de gases de efeito estufa permanecem altas.

Até 2100, eventos de magnitude similar ao de 2023 no Canadá deverão ser de 6,3 a 10,8 vezes mais frequentes sob um cenário de emissões médio-alto. Já a Amazônia Ocidental poderá ter uma temporada de incêndios extremos quase três vezes mais frequente e na Grécia estão projetados para dobrar. Por outro lado, um cenário de baixas emissões pode limitar a probabilidade futura de incêndios extremos.

Para a temporada de 2024-25, as previsões sugerem uma probabilidade continuada acima da média de clima propício a incêndios – condições quentes, secas e com ventos – em partes da América do Norte e do Sul, que apresentaram condições favoráveis para incêndios na Califórnia, nas cidades canadenses de Alberta e Colúmbia Britânica e no Pantanal brasileiro em junho e julho.

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