Na prática, nenhuma decisão da COP da Biodiversidade da Organização das Nações Unidas (ONU) daqui para frente será tomada sem a opinião e votação de povos indígenas e quilombolas
(Foto: Nações Unidas Biodiversidade)
Na COP16, realizada em Cali, Colômbia, um marco histórico foi alcançado para povos indígenas e afrodescendentes na conservação ambiental. Após intensas negociações que se estenderam até a madrugada do sábado, horas antes do encerramento, a conferência aprovou a criação de um órgão permanente de participação na mesa de negociações. Na prática, nenhuma decisão da COP da Biodiversidade da Organização das Nações Unidas (ONU) daqui para frente será tomada sem a opinião e votação de povos indígenas e quilombolas. Liderada pelo Brasil, a medida foi considerada uma vitória para movimentos indígenas globais, que amplia um espaço contínuo de diálogo e influência nas metas de redução de perda da biodiversidade do Marco Global Kunming-Montreal.
A aprovação, que envolveu representantes de 196 países, enfrentou obstáculos sobre o financiamento das estratégias de conservação, mas foi celebrada por representantes indígenas. “Estamos avançando, com diálogo e com toda essa interação entre os povos indígenas, as comunidades locais e os afrodescendentes. Juntos, para aumentar a participação de quem realmente está no dia a dia, fazendo essa luta para proteger o meio ambiente e a biodiversidade”, afirmou a ministra dos Povos Indígenas do Brasil, Sonia Guajajara. Além disso, a COP16 reconheceu oficialmente, pela primeira vez, o papel vital dos afrodescendentes, incluindo quilombolas, na preservação ambiental e uso sustentável da natureza. Esse reconhecimento, impulsionado pela Colômbia e com apoio do Brasil, encontrou resistência inicial da União Europeia, que recuou após a pressão de países sul-americanos.
“Este é o segundo gol desta parceria da COP16 em Cali com a COP30 em Belém. Não estamos competindo como no futebol, mas estamos fazendo gols juntos”, afirmou Susana Muhamad, ministra de Meio Ambiente da Colômbia e presidente da COP16. O segundo gol, que a ministra Susana se refere é sobre a decisão para proteger áreas marinhas conhecidas como "Áreas Marinhas Ecologicamente ou Biologicamente Significativas" (EBSA, na sigla em inglês) , em áreas mais críticas e vulneráveis do oceano. De acordo com a resolução aprovada em Cali, a medida contribuiu no processo de reconhecimento de áreas prioritárias para a conservação da biodiversidade marinha.
A ideia é identificar e classificar as EBSAs com base em critérios científicos, como a singularidade da biodiversidade e a importância dos serviços ecológicos que essas áreas oferecem. Embora o reconhecimento como EBSA não imponha automaticamente restrições, ele cria uma base científica para que países implementem áreas de proteção e desenvolvam ações de gestão sustentável. A decisão oferece uma ferramenta poderosa para governos planejarem ações de conservação, principalmente em locais vulneráveis. Para países como o Brasil, com uma vasta costa e ecossistemas únicos, isso significa a possibilidade de proteger áreas sensíveis e ricas em biodiversidade antes que sofram impactos irreversíveis devido a ameaças como a poluição, a pesca predatória e as mudanças climáticas.
As costas dos estados do Amapá e Pará compõem uma região única do litoral amazônico, onde rios como o Amazonas encontram o oceano, formando um ambiente rico em biodiversidade marinha e de água doce. A zona costeira desta região é essencial para espécies ameaçadas, como peixes-boi e tartarugas marinhas, além de abrigar manguezais, que ajudam a capturar carbono e proteger as áreas contra erosão e inundações. Essa região enfrenta pressões crescentes, desde a expansão da indústria de pesca até o aumento de atividades de exploração mineral e de gás natural. Além disso, a construção de infraestruturas, como portos e rodovias, coloca em risco habitats críticos, impactando diretamente as populações locais, muitas delas indígenas e quilombolas, que dependem dos recursos naturais para sobreviver.
A designação de EBSAs ao longo do litoral da Amazônia oferece uma base de dados científica que ajuda o Brasil a tomar decisões de conservação mais informadas. Com esse reconhecimento, áreas específicas podem ser mais facilmente protegidas e monitoradas, criando bases para políticas que garantam o uso sustentável dos recursos marinhos. Isso inclui iniciativas de monitoramento ambiental e a possibilidade de criação de áreas marinhas protegidas que ajudem a preservar os ecossistemas únicos do Amapá e Pará, por exemplo.
Dan Zarin, diretor executivo da WCS para florestas e clima, aponta que é preciso comemorar, mas com cautela. A implementação das medidas passa pelo que os governos decidirem, e que por isso é importante avançar na agenda legislativa.
“Na COP16, as conexões entre natureza e clima receberam a atenção que mereciam, particularmente daqueles governos e organizações da sociedade civil focados em traçar um curso da CDB COP em Cali este ano para a 30ª COP do Clima em Belém, Brasil, no final de 2025. Abordar as crises do clima e da natureza requer uma rápida aceleração na transição dos combustíveis fósseis para a energia renovável e um investimento sem precedentes na proteção e fortalecimento das barreiras naturais da Terra contra os impactos da crise climática – nossas florestas, pastagens e ecossistemas marinhos e costeiros. Esse investimento deve incluir apoio aos povos indígenas e outras comunidades cuja administração sustenta a integridade ecológica da natureza. Embora o texto acordado na CDB COP16 seja útil, neste momento crítico as ações tomadas pelos governos e pelas empresas que eles regulam falarão mais alto do que as palavras acordadas em Cali”, aponta Dan Zarin.
Organizações de defesa da saúde humana e animal também comemoraram a adoção do primeiro Plano de Ação Global para Biodiversidade e Saúde, em Cali, em um momento decisivo que afeta humanos, vida selvagem e outros animais, e ecossistemas. A abordagem One Health (Uma Saúde), que é integrada no Plano de Ação Global para Biodiversidade e Saúde, reconhece essas interconexões e interdependências entre a saúde do ecossistema, animal e humana e é essencial para a conservação eficaz da biodiversidade. A destruição da natureza e uma interface aumentada entre pessoas e vida selvagem são conhecidas por levar ao transbordamento de patógenos, levando a epidemias e pandemias e por destruir os ecossistemas críticos para a natureza e o bem-estar humano, avalia a WCS.
Como foco nas populações indígenas, quilombolas e ribeirinhos, a COP da Biodiversidade também aprovou a criação do Fundo de Cali, um mecanismo voluntário destinado à repartição de benefícios derivados do uso de recursos genéticos e informações de sequência digital (DSI, na sigla em inglês). Este acordo visa assegurar que os benefícios do conhecimento e dos recursos naturais sejam compartilhados com as comunidades e povos que os originaram. De acordo com as novas regras, empresas dos setores farmacêutico, cosmético e de suplementos alimentares, que se beneficiam comercialmente do uso desses materiais, deverão contribuir com 1% do lucro ou 0,1% da receita.
Foi definido que 50% dos recursos deste novo fundo devem ser destinados a projetos e implementação de políticas de defesa e conservação da biodiversidade com ampla participação, ou mesmo financiamento diretamente de povos indígenas, afrodescendentes e comunidades locais, como medida efetiva de reparação histórica. Esta referência é importante e inédita para um documento oficial do sistema ONU. O fundo é projetado para incentivar uma maior responsabilidade das empresas em relação ao uso de recursos naturais e promover a justiça social.
Embora o mecanismo tenha um foco comercial, ele também abre exceções para pesquisas acadêmicas e instituições públicas que utilizam essas informações sem fins lucrativos. A expectativa é que, pelo menos, metade dos recursos arrecadados seja destinada a apoiar povos indígenas e comunidades locais, seja através de governos ou por meio de pagamentos diretos a instituições escolhidas por essas comunidades.
“O dinheiro que vem das empresas para o pagamento pelo uso dos recursos genéticos da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais associados não é uma doação, é um pagamento legítimo. O DSI é, de fato, um tema técnico muito complexo, mas é também um tema imperativamente ético, pela obrigação de se reconhecer os conhecimentos e o domínio das populações tradicionais. Quando temos um compromisso ético, a resposta técnica a gente encontra e é isso que os negociadores estão fazendo”, afirmou Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e Clima do Brasil.
Uma das principais decisões sobre o financiamento da COP16 foi o apoio de Alemanha, Colômbia, Emirados Árabes Unidos, Malásia e Noruega ao Fundo Florestas Tropicais para Sempre (TFFF), uma proposta do Brasil para recompensar financeiramente países em desenvolvimento que preservam suas florestas tropicais. A ministra Marina Silva explicou que o TFFF pagará anualmente por cada hectare de floresta preservada, penalizando, por outro lado, as áreas desmatadas. Esse fundo é um avanço no compromisso firmado na COP28 e deverá ser formalizado na COP30, em Belém, apontaram os negociadores. Razan Al Mubarak, da União Internacional para a Conservação da Natureza, declarou que o fundo é uma aposta em prol da sustentabilidade: “Estava presente quando o governo brasileiro anunciou o TFFF. Era claro que não era uma proposta que podia ser dispensada, mas sim um fundo ‘tudo ou nada’ pela preservação da natureza”, disse.
Para Inger Andersen, Subsecretária-Geral das Nações Unidas e Diretora Executiva do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, a COP16 entregou compromissos importantes sobre as interconexões na natureza e clima, biodiversidade e saúde e Áreas Marinhas Ecológica ou Biologicamente Significativas (EBSAs). "É claro que gostaríamos de ter conseguido mais na mobilização de recursos e avanços na estrutura de monitoramento, mas não diminuiremos o ritmo do trabalho. 2030 está se aproximando rapidamente e a ação não pode esperar”, afirmou.
Entre os principais desafios que a COP16 buscou superar dos resultados da COP15, no Canadá, foi o aumento da participação dos protetores da biodiversidade, que atuam diretamente em suas comunidades e mantém suas tradições de plantio e preservação. O aumento de pautas e resoluções em que essas populações são contempladas aumentou 37% desde a última COP, de acordo com levantamento da reportagem, com o principal destaque para os povos tradicionais.
Assim como os povos indígenas, a ciência desempenha um papel crucial na preservação da biodiversidade amazônica, especialmente em contextos globais de negociação como a COP16. Uma das soluções apontadas para unir ciência acadêmica e conhecimento indígena para preservação da biodiversidade foi compartilhada pelo Instituto Serrapilheira, no Pavilhão Brasil, durante a COP16.
A proposta do Centro de Ecologia Tropical foca em metodologias colaborativas, onde o saber acadêmico e a “ciência indígena” dialogam em pé de igualdade, aponta Gabriella Seiler, cientista do Instituto Serrapilheira. Peça central na execução da proposta, Seiler argumenta que um dos maiores desafios para integrar esses conhecimentos é o tempo e o processo de criação de confiança, que, embora lento, é essencial. Esse trabalho é conduzido diretamente em territórios indígenas, respeitando protocolos éticos, como descreve Gabriella: “O conhecimento indígena oferece perspectivas práticas sobre temas como mudanças climáticas; por exemplo, ribeirinhos observam diretamente as mudanças nos ciclos de pesca.” afirma.
A criação do centro se originou do reconhecimento da ecologia como diferencial estratégico para o Brasil, dada sua biodiversidade, que corresponde a 20% do planeta. Gabriella explica que o centro não apenas reúne ecólogos, mas também economistas, antropólogos e comunicadores em forças-tarefas multidisciplinares para abordar problemas ambientais complexos. A ideia é promover uma ciência tropical aplicada que possa dialogar diretamente com tomadores de decisão, incluindo saberes indígenas. Natasha Felizi, também do Serrapilheira, complementa: “Ao longo dos anos, fomentamos iniciativas em ecologia, como formação em ecologia quantitativa, chamadas exclusivas para ecólogos negros e indígenas e o diálogo entre ecologias acadêmicas e indígenas, o que nos levou a criar esse centro.”
Um dos eixos do centro será o desenvolvimento de uma plataforma geoespacial para guiar esforços de restauração e conservação na Amazônia. Gabriella esclarece que essa plataforma abrange três pilares: avaliação biofísica e econômica dos serviços florestais; identificação de espécies-chave para aumentar a resiliência climática; e a integração entre ciência indígena e acadêmica. Além disso, estão em desenvolvimento quatro eixos de pesquisa: diagnóstico da biodiversidade; produção de conhecimento compartilhado; relação entre biodiversidade e sociedade; e a resiliência ecossistêmica no contexto das mudanças climáticas. Natasha enfatiza: “Ao longo dos últimos sete anos, consolidamos uma base crítica de cientistas e jornalistas comprometidos com a ciência. No centro, a diferença será o foco em ciência aplicada aos desafios de políticas públicas, como a formulação de instrumentos econômicos para valorizar a biodiversidade.”
O diálogo entre Brasil e Colômbia também será fundamental para fomentar a conservação da biodiversidade latino-americana, unindo esforços científicos e de governança em ambos os países, que estão sediando as COP16 e COP30. Seiler menciona parcerias com o Instituto Humboldt da Colômbia, que também atuará como centro de apoio técnico e científico para o Convênio sobre Diversidade Biológica, fornecendo dados para doze países da América Latina implementarem o Marco Global de Biodiversidade.
A colaboração com o Instituto Humboldt e outras entidades latino-americanas reflete a urgência de uma ação conjunta entre Brasil e Colômbia para preservar a biodiversidade regional. Gabriella Seiler menciona a carta enviada por 70 lideranças a Lula e Petro, pedindo por ações robustas para enfrentar o desmatamento e as crises climáticas. Essa troca entre os dois países se torna ainda mais significativa com a COP30, que será sediada em Belém, Brasil, em 2025.
Esta reportagem foi produzida por Cley Medeiros para o A Crítia como parte da Bolsa Virtual da CDB COP16 de 2024, organizada pela Earth Journalism Network, da Internews.