ENTREVISTA DA SEMANA

A moda é uma ferramenta que expressa a cultura e a política, afirma estilista amazonense

Artista de Manaus radicado na cidade do Rio de Janeiro produz moda inspirada na arte e na cultura amazônica

waldick júnior
waldick@acritica.com
23/11/2024 às 08:47.
Atualizado em 23/11/2024 às 08:53

Estilista Wanglêys Manaó diz que a moda que produz é inclusiva, sustentável e inspirada na Amazônia e na sua cultura (Foto: Acervo pessoal)

A moda é uma ferramenta que expressa a cultura, a política e o modo de vida de um povo. Essa é a visão do estilista Wanglêys Manaó, criador do estúdio WAN WAN, de moda agênera, sustentável e inspirada na arte e cultura amazônica. O espaço está localizado no Rio de Janeiro, atual cidade de residência do artista. 

(Foto: Acervo pessoal)

 Wanglêys integra um movimento que tem buscado, por meio da moda, fortalecer e mostrar ao mundo uma identidade amazônica protagonizada por pessoas que vivem nas zonas rurais e urbanas deste que é o bioma mais diverso do mundo - inclusive na sua cultura e diversidade de povos. Para A CRÍTICA, o estilista falou sobre colonialismo na moda, sustentabilidade, ageneridade e mais. Confira. 

O que que levou você para  a moda?

Quando eu ainda morava em Manaus, era gestor do setor de eventos de uma rede de hotelaria internacional. O cliente ia realizar um evento em Manaus e solicitou algumas coisas regionais, dentre delas, bolsas que tivessem estampas e falassem sobre o cotidiano da Amazônia de uma maneira geral, da cultura indígena amazônica, manauara, enfim. Souvenirs, objetos de cestaria, decoração, etc. E aí eu fui atrás de tudo isso com meses de antecedência e não encontrei essa moda específica, essa moda voltada para a Amazônia na época. Isso já deve ter aproximadamente 15 anos.

Naquela época, era uma coisa muito mais simples, muito mais comum, um souvernir, uma camiseta branca com aquela estampa feita de uma forma até desconfortável, aquela prensa, e aquela roupa de poliéster, então não era isso o que o meu cliente queria. Ele queria uma roupa que pudesse usar em algum local do planeta e pudesse vestir uma calça com uma pegada amazônica. Então foi aí que eu resolvi estudar. Pensei sobre ser um mercado que eu gosto e que não tinha comercialização. Estudei a parte de aplicativos gráficos, Corel Draw, Photoshop, e aí eu me encantei pela arte da criação.

De que maneira, na sua concepção, o mundo da moda recebe hoje esse estilo amazônico e indígena, qual é a abertura que se tem para isso?

(Foto: Acervo pessoal)

Hoje a cultura amazônica na moda está sendo vista pelo mundo todo. Nós temos uma cultura rica em ‘N’ questões e fatores. Primeiro, os grafismos indígenas, a nossa fauna, flora, a matéria-prima que nós utilizamos pra produzir muitos artesanatos, as cestarias, as fibras.Tudo isso está sendo visto pelo universo da moda, vou dizer assim, pelo mercado da moda, de uma maneira muito boa.

 Nós temos hoje representantes do Amazonas, inclusive, um deles é o Maurício Duarte, que estudou comigo, tem uns vinte e poucos anos. Hoje ele ascendeu com moda também, justamente por isso, por agregar no trabalho dele a matéria-prima local. Por exemplo, as sementes de açaí, as escamas de pirarucu, as fibras de arumã, de tucum. Tudo isso hoje eu trabalho e agrego valor a essa matéria-prima que era meramente considerada como um souvenir e hoje isso se torna um produto de moda, de um alto padrão. 

Eu uso cuias pra fazer bolsas, e você vê que tem cara de coisa fashion, não tem cara de souvenir, de artesanato, a gente tem uma qualidade de matéria-prima e de estética fantástica, o que era apagado.

(Foto: Acervo pessoal)

 Hoje em dia esse universo da moda também passa por um processo de mudança, de valorizar a manualidade. Os processos manuais envolvem processos ancestrais também, porque a manualidade é passada de geração pra geração, de pai para filho, de mãe para filha, então isso também é um movimento universal que a gente está vivendo especificamente no mercado de moda. 

Você se mudou para o Rio para fazer uma pós-graduação em Belas Artes. O que te fez permanecer no Rio e como avalia o mercado da moda em Manaus? 

Sendo sincero, de forma econômica e política, o Amazonas não tem uma produção de moda. Não tem, na indústria, por exemplo, na Zona Franca, você não tem um polo de moda. A faculdade na qual eu me formei foi criada para atender o Polo Industrial de Manaus e não existe esse mercado, então eu optei por vir para o Rio de Janeiro.

Há três anos eu venho desenvolvendo um trabalho voltado para o teatro, para a arte de uma maneira geral e isso tem público, tem mercado que paga pelo meu trabalho, e é o meu trabalho original mesmo, o meu trabalho que tem a minha raiz.
Assinei figurinos de três peças e no meu primeiro trabalho eu ganhei um prêmio. Fui contemplado com um prêmio no centro brasileiro de teatro infantojuvenil.

E nesses figurinos você utiliza recursos amazônicos?

Para a construção dos materiais, esteticamente, sim, mas não obrigatoriamente na matéria-prima. Nesse caso, eu peguei a estética dos grafismos, peguei a questão da sustentabilidade, algum material que eu já tinha aqui, malhas em geral, tecidos, sobras de material que eu já tinha feito, roupas de algodão, e resignifiquei, trouxe uma nova percepção.

O seu estúdio também trabalha com a moda agênera. Em relação a esse ponto, a gente tem uns indicativos de que o Brasil tem se tornado um país mais conservador. Um exemplo é parte dos parlamentares, que propõe e apoia projetos contrários a essas pautas. Você avalia essa moda tem espaço para crescer?

Olha, primeiro que sempre houve essa moda. É total a inclusão de gênero nas nossas vestimentas. Eu sou da década de 80, nasci em 82, e lembro que até nos anos 90, existia uma ala nas grandes lojas, como a Mesbla, que hoje não existe mais, dentre outras, que era moda unisex. Então, com esse conservadorismo, as coisas foram tomando um outro lugar.

(Foto: Acervo pessoal)

 Mas, além do conservadorismo estar crescendo, existe também um outro lado, né? Hoje, apesar dos pesares, nós temos a liberdade de ser quem somos. Muitas leis paralelas ao conservadorismo também surgiram.

O direito ao LGBT, a criminalização de todo tipo de preconceito contra uma pessoa, por exemplo, trans, gay, lésbica, etc. As pessoas pretas, indígenas. Então, há um paralelo ali. 

O Brasil não está estagnado unicamente nessa direita complexa que a gente tem visto no cenário político. Porém, sempre houve, e está voltando.

Se tem trans, ele precisa se vestir. Se tem gay, sempre houve, eles sempre precisavam se vestir. Então, ainda hoje, a minha moda é inclusiva por isso. Independente do gênero, na verdade. Não se trata de gênero ou de sexo. Se trata de uma roupa, de vestir corpos.

A gente tem, em cidade da Amazônia, esse costume de se vestir de uma maneira que não considera o calor na região, em muitos casos. Especialmente falando em ambientes formais. Você vê possibilidade disso ser alterado?

Nós fomos educados a vestir essas roupas que nós vestimos hoje. Ou seja, nós fomos colonizados. Por isso que eu sempre vou levantar esse termo, o contracolonial. Existem formas de a gente se vestir bem e estar dentro daquele contexto que a gente vive.

Culturalmente, a Amazônia, falando de Manaus, sobretudo, é uma cidade quente. Como várias outras cidades que são muito mais quentes pelo mundo. Por exemplo, na Arábia é um calor infernal e eles estão de turbante. Porém, os tecidos que eles vestem são naturais. É o linho, o algodão puro.

Então, sim, é possível e já há movimentos. A própria pandemia trouxe um comportamento para a nossa sociedade mundial. Mas falando aqui do Brasil, até onde eu tenho acessado, eu vejo pessoas mais à vontade, com roupas mais frescas, sem muita costura, sem muita formalidade. Você pode estar bem vestido, com uma roupa que te cobre o corpo, mas de uma forma contraída e confortável.

Você fala sobre moda sustentável. Essas matérias-primas geralmente são fornecidas por comunidades, associações. Porém, isso estando em um nível alto, com uma grande demanda, não pode gerar um efeito reverso e incentivar exploração ilegal da floresta? 

Olha, numa visão de colonizador, isso vem acontecendo há séculos. Nossa terra foi invadida e isso vem acontecendo desde 1500, lá para trás. Então, eu acredito que esse processo não acabou, porque nós fomos educados a fazer isso com a nossa natureza, a depredar, destruir para agregar valor, para enriquecer, para acumular.

Dentro da minha percepção ancestral, indígena, isso não acontece. Por quê? Se você consome um açaí, ele vai te alimentar, mas você plantou o açaí antes. A semente, parte você vai replantar, outra parte você vai fazer uma benfeitoria ali. Você vai polir, vai fazer os furos para utilizar, fazer biojoias, agregar.

Boa parte dos tecidos vêm de fibra natural. Se você for numa comunidade ribeirinha ou indígena, ou enfim, numa produção familiar que tem uma produção de juta, por exemplo, que dá para criar tecidos, aquela família, ou aquele grupo que vive ali na floresta, eles vão ser incapazes de destruir a floresta que os sustenta, que dá o dinheiro para eles comprarem os alimentos, e mesmo o próprio alimento que vem daquela terra, né? Então, essas pessoas são as verdadeiras guardiões da floresta.

Por isso que é importante você ter tudo sustentável. O que é sustentável? É aquilo que se sustenta e que não vai te faltar. As pessoas confundem muito esse termo, mas a sustentabilidade nada mais é do que isso. É o natural, é o que nutre, é o que sustenta a necessidade.

Num ambiente urbano da Amazônia, parece não haver essa preocupação de ter uma identidade amazônica forte. A gente ainda tem muita influência cultural de outros espaços. Você acha que a moda é o caminho para que essa identidade amazônica seja fortalecida, especialmente em ambientes urbanos?

A moda reflete o comportamento de uma sociedade, então, assim como os povos originários estão migrando para os grandes centros humanos, eles carregam em si a sua cultura e a sua origem, sua cosmovisão. Hoje, por exemplo, já temos eu, tem o estúdio Senhor do Rio, que é um cara que veio de São Gabriel da Cachoeira. O Maurício Duarte vive em São Paulo já há alguns anos, também vendo essa decolonização ou contracolonização desse processo de se vestir, valorizando o que temos de real valor, o que é nosso, mas isso leva um tempo.

(Foto: Acervo pessoal)

A cultura não muda em um estalar de dedos, ela leva anos para que seja realmente consumida e entendida pelos próprios moradores, por exemplo, de Manaus, da Amazônia. Mas isso já é o futuro, já estamos vivendo isso. Tem a Vanda Witoto também, que é uma pessoa que está envolvida na política, na moda, porque a moda é uma ferramenta, ela expressa a cultura, a política, o modo de vida de um povo.

 Então, uma vez que esse povo se reconhece como tal, a moda  vai expressar tudo aquilo que aquele povo de fato é e sente.

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