MÉDICOS TRANS NO AMAZONAS

Desafios e barreiras que inspiram inclusão e saúde

Histórias de superação de Alessandra Liberato e Levi da Costa Lopes marcaram o mês da visibilidade trans

Lucas Vasconcelos
02/02/2025 às 15:24.
Atualizado em 02/02/2025 às 15:24

Alessandra, de 27 anos, é formada pela Ufam, em 2021. Levi, de 26 anos, é de Parintins e formado em Medicina pela UEA (Fotos: Junio Matos/A CRÍTICA e Acervo pessoal)

Alessandra Liberato e Levi da Costa Lopes quebraram barreiras históricas ao se tornarem os primeiros médicos trans do Amazonas (Manaus e Parintins, respectivamente). Suas trajetórias, marcadas por desafios e superação, reforçam a importância da inclusão na saúde e a urgência de um futuro mais justo, tema em evidência no Dia da Visibilidade Trans, celebrado em 29 de janeiro.

Alessandra, de 27 anos, nasceu e cresceu em Manaus. Formada pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam) em 2021, é atualmente finalista da residência em Medicina de Família e Comunidade. Desde cedo, enfrentou conflitos por não se encaixar nas expectativas de gênero.

“O início da minha vivência enquanto uma pessoa trans não se deu na residência médica. Sou uma mulher transgênero branca, filha de pai militar e mãe evangélica, expulsa de casa aos 21 anos ao me assumir bissexual, durante o 8º período da graduação, sendo obrigada a construir minha independência desde então”, relatou Alessandra.

Desde pequena, enfrentou um ambiente que reprimia sua sensibilidade e afinidade com as artes.

“Apanhei por brincar de bonecas, minha sensibilidade e afinidade com as artes eram um problema, e minha compreensão e expressão do gênero eram únicas”, recordou.

Foi durante o internato que, paralelamente aos desafios da medicina, Alessandra iniciou um processo de autodescoberta com apoio da terapia.

“Na época, acreditava que ser trans era uma sentença de morte, já que se falava em uma expectativa de vida de 35 anos. Hoje, sei que esse dado reflete apenas casos de assassinatos.”

A médica ressalta que ainda não há dados concretos sobre a expectativa de vida de pessoas trans, mas aponta que as estatísticas da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) sobre assassinatos revelam uma realidade alarmante.

Em 2023, a média foi de 12 homicídios de pessoas trans por mês, um aumento em relação ao ano anterior. No total, 145 assassinatos foram registrados, sendo cinco das vítimas defensoras de direitos humanos. Os dados são do Dossiê da Antra de 2023, divulgado no último dia 29.

Início da transição

Antes da residência, Alessandra atuou por um ano em Tabatinga, onde iniciou sua transição e tentou criar um ambulatório trans, mas não conseguiu apoio do Estado. Apesar dos obstáculos, continua firme em sua missão de promover a saúde da comunidade LGBTQIA+.

Além da medicina, também atua como cantora e produtora musical, sob o nome Kalyope.

Da ilha Tupinambarana para a medicina

Levi da Costa Lopes, de 26 anos, é outro exemplo de coragem e determinação. Nascido em Parintins, ele se formou em Medicina pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA) no ano passado. Inicialmente, Levi não pensava em cursar medicina, mas, no 2º ano do ensino médio, se interessou pela área ao estudar órgãos humanos em Biologia.

“Cursar medicina não passava pela minha cabeça até o 2º ano do ensino médio, quando estudamos os órgãos humanos em Biologia. Gostei imediatamente e passei a considerar o curso. Também tive muito apoio dos meus professores e família, o que me impulsionou ainda mais. Além disso, a medicina me daria a liberdade que eu não tinha na minha cidade, já que precisaria me mudar para Manaus para estudar. Acho que tudo casou perfeitamente para eu seguir no curso”, contou à reportagem.

Na faculdade, além de encontrar seu caminho profissional, Levi vivenciou um processo de autodescoberta e foi bem recebido pelos colegas.

“A faculdade foi fundamental para eu me entender finalmente como uma pessoa trans. Foi na faculdade que descobri que havia mais pessoas como eu. Lá, conheci a Drª Daria Neves e o Ambulatório de Diversidade Sexual e Gênero, que passei a frequentar regularmente. Isso foi essencial para que eu me tornasse quem sou hoje. Também me ajudou na faculdade, pois sempre me senti diferente dos meus colegas e não entendia o porquê. Quando me assumi trans para eles, todos me receberam bem”, explicou o médico.

No entanto, nem tudo foi fácil. Levi enfrentou desafios, como desentendimentos com alguns professores e resistência por parte de profissionais de saúde.

“Tive alguns atritos com professores e equipes de saúde, não porque sabiam que eu era trans, mas por comentários desagradáveis sobre outras pessoas trans. Essas situações me chatearam, mas nunca me desanimaram. Felizmente, também tive professores que me apoiaram, respeitaram e até admiraram. A faculdade foi um período doloroso, não só pelo meu processo de autodescoberta, mas também pela mudança de rotina, a distância da família e de casa…”, afirmou Lopes.

Atualmente, Levi atua como médico clínico, mas deseja se especializar em Ginecologia e Obstetrícia para oferecer atendimento humanizado à população trans.

“Meu sonho é poder trabalhar com a população trans, seja em Manaus ou no interior, e ajudar outras pessoas a se aceitarem, se encontrarem e se amarem, assim como foi comigo.”

Projetos futuros

Tanto Alessandra quanto Levi têm um objetivo comum: ampliar o acesso da população trans à saúde no Amazonas.

Alessandra está empenhada em publicar um artigo sobre seu trabalho de conclusão de residência, focado na construção de um cuidado inclusivo na medicina.

“Ao fim da residência, escrevi um trabalho de conclusão intitulado ‘A Construção do Cuidado Inclusivo no Atendimento a Pessoas Transgênero: A Medicina de Família e Comunidade Sob o Olhar da Primeira Médica Travesti do Amazonas’, que pretendo transformar em um artigo para ser publicado, visando fornecer estratégias para melhoria do cuidado de pessoas trans na atenção primária à saúde em Manaus”, enfatizou.

Levi, por sua vez, quer se especializar em Ginecologia Endócrina para dar continuidade ao trabalho do Ambulatório de Diversidade Sexual e Gênero.

“Quero me especializar para dar continuidade ao trabalho do ambulatório, ajudando outras pessoas trans a terem acesso ao cuidado que precisam e a se aceitarem, assim como aconteceu comigo”, afirmou.

Mensagem de esperança

Alessandra e Levi esperam que suas trajetórias inspirem outras pessoas trans a persistirem em seus sonhos.

“Persistam! Por muitas vezes, pensei em desistir do meu curso por não ter fé em mim mesmo, por medo de sofrer preconceito, mas agora vejo que valeu a pena o esforço. Viver um dia de cada vez é essencial, senão a gente se atropela no meio do caminho e fica cada vez mais frustrado. É importante ter paciência consigo mesmo, porque a jornada não é fácil, mas vale a pena”, aconselha Levi.

Alessandra reforça que seu desejo é que muitas outras pessoas trans sigam o caminho da medicina.

“Ser a primeira médica travesti do Amazonas é um marco, mas meu maior desejo é que muitas outras venham depois de mim. Sei que o caminho é desafiador, mas cada uma de nós, que resiste, abre espaço para um futuro mais digno e possível. Se você é uma pessoa trans batalhando pelos seus sonhos, saiba que sua existência já é revolucionária. Cerque-se de apoio, cuide da sua saúde mental e siga firme. Não estamos sozinhas, e juntas vamos transformar o mundo.

Agora, se você é uma pessoa cisgênero, deixo as palavras de Erika Hilton: ‘Respeite a luta histórica do movimento LGBTQIA+, respeite os nossos passos, respeite as nossas trajetórias que nos trouxeram até aqui’”, declara Alessandra.

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