O rio Putamayo (Colômbia) é um desses corredores de água em que o garimpo ilegal se desenvolve. No Brasil, ele tem o nome Içá, e é um dos afluentes do rio Amazonas
Evolução do garimpo ilegal da Colômbia na Amazônia brasileira
‘La minería ilegal’, como é chamado o garimpo ilegal na Colômbia, tem se expandido a cada dia. Segundo o relatório ‘Exploração de ‘Ouro de Aluvião’ [nos rios], da Organização das Nações Unidas (ONU), mais de 52 mil hectares de reserva ambiental no país colombiano foram afetados pelo garimpo ilegal de ouro em 2020. Chama a atenção que parte dessas áreas exploradas está em rios que correm da Colômbia para o Brasil, inclusive, com a exploração cruzando as fronteiras dos dois países.
O rio Putamayo (Colômbia) é um desses corredores de água em que o garimpo ilegal se desenvolve. No Brasil, ele tem o nome Içá, e é um dos afluentes do rio Amazonas, entrando no país pelo município de Santo Antônio do Içá, a 878 km de Manaus em linha reta. Segundo o Observatório do Mercúrio, sistema da World Wilde Fund for Nature (WWF), há registros de mercúrio na água desse rio, metal utilizado no processo de busca por ouro.
“Como em toda a Amazônia, essa região da fronteira tem poucos agentes ambientais e consequentemente uma presença pequena do governo federal. Somando isso a toda a perda de orçamento dos órgãos ambientais que deveriam fazer a fiscalização, é muito provável que esse cenário até aumente na região”, afirma a ex-secretária nacional de Coordenação de Políticas Públicas para a Amazônia do Ministério do Meio Ambiente, Muriel Saragoussi.
Para além das áreas protegidas, o relatório da ONU totalizou mais de 100 mil hectares com “evidências de exploração de ouro de aluvião” na Colômbia, em 2020. Desses, 69% são considerados ilegais e contaminam a água com substâncias tóxicas, como o mercúrio. O número é maior que o ano anterior, 2019, quando haviam sido 98 mil hectares.
Nesse mesmo rio, foram presos quatro indivíduos em dezembro passado durante uma operação da Marinha colombiana. Eles foram flagrados em atividade de garimpo ilegal, inclusive, portando 45 gramas de mercúrio, uma bateria, um cilindro de 40 quilos e quatro baldes de ACPM (combustível). A draga em que estavam foi destruída.
Outras áreas
A maior parte dos registros de garimpo ilegal que cruzam a fronteira estão em afluentes que entram no Brasil pelos municípios Tabatinga, Japurá e o citado Santo Antônio do Içá. Porém, os dados do Observatório mostram áreas extensas de exploração em municípios amazonenses da região, como São Paulo de Olivença, Jutaí e São Gabriel da Cachoeira.
Mais acima do Amazonas, no rio Japurá (Caquetá na Colômbia), a situação é ainda pior. Dados do Observatório do Mercúrio mostram vários registros de atuação de balsas ilegais de garimpo tanto do lado brasileiro quanto na extensão colombiana do afluente.
Mesmo no rio Puruí, afluente do Japurá que está no lado brasileiro, há registros de balsas de garimpo avistadas na região. Os casos foram relatados ao Observatório pela Fundação Gaia Amazonas, organização colombiana de proteção ambiental, e pela unidade administrativa Parques
Naturais Nacionais, órgão ligado ao governo da Colômbia.
Em entrevista ao jornal ambiental colombiano Mongabay, o diretor territorial do Amazonas [estado da Colômbia] nos Parques Naturais Nacionais, Robinson Galindo, disse que o garimpo ilegal precisa ser combatido em conjunto por todos os países da fronteira. “Tratar a mineração ilegal como uma questão nacional única não resolverá o problema. Tanto o Ministério das Relações Exteriores da Colômbia quanto as autoridades brasileiras devem estar envolvidos”.
Áreas de proteção ambiental
Em ambos os lados da fronteira, a mineração ilegal ocorre em territórios indígenas e em parques de preservação ambiental, segundo mostra o Observatório do Mercúrio. Dentre as principais atingidas do lado brasileiro estão a TI Lago do Correio, TI Porto Limoeiro, TI Matintin e TI Betânia. Todas, na margem do rio Içá.
O mesmo ocorre no rio Japurá, onde já foi registrada atividade garimpeira. O afluente corre nas terras indígenas Alto Rio Negro e Rio Apapóris. É o que confirma também o presidente da Federação das Organizações Indígenas do Alto Rio Negro, Marivelton Baré.
“Aqui tem muito movimento, entrada de pessoas estranhas, negociações. Existe até alistamento de jovens que querem ir trabalhar nessas atividades ilegais de garimpo. Inclusive, é incitado esse garimpo por conta desses discursos do governo e dos interesses minerários na região. Em São Gabriel, o fluxo é de entra e sai quem quer, não tem controle”, afirma ele.
Até mesmo uma ação do Ministério Público Federal (MPF), de número 1000580-84.2019.4.01.3200, está ligada a esses registros de atividade garimpeira. Isso porque a Agência Nacional de Mineração (ANM) estava apenas deixando sobrestados (em aguardo) pedidos de licença para garimpo na área, dando a entende que poderiam ser concedidos em algum momento.
No entanto, com a ação do MPF, em 2019, o juiz federal do Amazonas, Lincoln Rossi da Silva Viguini, determinou que a ANM arquivasse todos os pedidos, sob risco de gerar prejuízo aos povos indígenas da região. Ele também considerou que apenas sobrestar os pedidos era inconstitucional.
No lado colombiano, o garimpo avança com força nas terras indígenas Yaigoje Apaporis; Mirití-Paraná; Curare Los Ingleses; e em Camaritagua. Todas estão situadas nas proximidades da fronteira com o Brasil, na região em que corre o rio Putamayo.
“Praticamente toda a faixa de fronteira é de pleno abandono, não tem fiscalização, ação de contenção para inibir áreas ilegais ou clandestinas. Para além do garimpo, temos também o problema dos narcóticos entrando sem nenhum controle. Sentimos muito que existe um estado de abandono, e isso é um problema da União que precisa ser resolvido”, crítica o presidente da Foirn.
A reportagem procurou o Comando Militar da Amazônia (CMA) para saber quais ações de proteção à fronteira estão sendo realizadas na região. Além disso, se há registros de atuação garimpeira que tenham sido visualizadas pelos militares. O órgão respondeu apenas por meio de nota.
“O Comando Militar da Amazônia (CMA) informa que atua diuturnamente em sua área de responsabilidade - abrangendo os Estados do Acre, Amazonas, Rondônia e Roraima, em estrita consonância com o Artigo 17A da Lei Complementar Nº 97, de 09 de Junho de 1999, sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas. O CMA reforça que a prevenção e eventual combate a ilícitos ambientais cabe aos órgãos de fiscalização do meio ambiente municipais, estaduais e federais, atuando isoladamente ou em ambiente interagência”, diz todo o teor da manifestação.
Brasil quer ‘repetir’ Colômbia
No último dia 9 de março, a Câmara dos Deputados aprovou um requerimento que permite a tramitação em regime de urgência do Projeto de Lei 191/2020. O texto prevê a liberação da exploração de mineração em terras indígenas, prática atualmente proibida sem o consentimento das populações tradicionais afetadas.
A proposta se assemelha, em partes, à Lei 535/2014, de Mineração e Metalurgia, sancionada neste ano na Colômbia. O texto prevê a possibilidade de conseguir licenças ambientais para explorar áreas protegidas – como terras indígenas – desde que com “prévio cumprimento da normativa ambiental e correlatas, e quando tais atividades não afetarem o cumprimento dos objetivos de proteção da área”.
Assim como na Colômbia, a regularização da mineração no Brasil é o assunto da vez na boca do presidente Jair Bolsonaro (PL). Foi ele, inclusive, quem pediu ao seu aliado Arthur Lira (PP-AL) para avançar com o PL 191/2020 na Câmara dos Deputados.
O Projeto de Lei, de autoria do governo federal, é similar ao da Colômbia quando propõe regulamentar as condições em que poderá haver pesquisa e mineração de recursos em territórios indígenas de todo o Brasil. O texto também prevê a possibilidade de instalação de hidrelétricas nesses territórios tradicionais, assim como estradas e ferrovias.
“Esse projeto tem muitos perigos, mas o principal é porque prevê a possibilidade de se ouvir os indígenas nesses projetos de exploração, mas retira deles o poder de decidir o que querem. É como se perguntasse o que o indígena pensa sobre mineração, mas depois ignorasse completamente e fizesse assim mesmo”, afirma a ex-secretária nacional de Coordenação de Políticas Públicas para a Amazônia do Ministério do Meio Ambiente, Muriel Saragoussi.
O presidente Bolsonaro usa como desculpa a guerra entre a Ucrânia e Rússia, e a possível crise de fertilizantes, para dizer que a questão “ambiental” e “indígena” precisam ser resolvidas no que diz respeito à mineração de potássio, um minério utilizado na produção de fertilizantes.
No entanto, estudo realizado por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e divulgado por A CRÍTICA mostra que apenas 11% das jazidas de potássio na bacia amazônica estão em terras indígenas, o que não justificaria a atual pressa para regularizar a mineração nesses territórios tradicionais.
“Usar a guerra como argumento para exploração de potássio em terras indígenas é uma falácia, porque tem muito mais fora das terras indígenas do que dentro. O investimento deveria ser, então, nesses outros lugares”, comenta Saragoussi.
Incentivo
A Colômbia, com 50 milhões de habitantes, tem um território menor que o Amazonas, mas compartilha com o estado brasileiro a maior floresta tropical do mundo e, por consequência, os mesmos problemas, dentre eles, o garimpo ilegal. Também na Colômbia, assim como no Brasil, os governos são fortes incentivadores da mineração.
Segundo o Ministro de Minas e Energia do país, Diego Mesa, o combate à ilegalidade ocorre “gerando condições e oportunidades” aos mineradores. No último dia 17 de fevereiro ele comemorou o crescimento de pessoas atuando no setor.
"Hoje passamos dos 5 mil mineiros que apresentamos em El Bagre no final de julho de 2021, para 13,5 mil mineiros em apenas sete meses. É assim que a mineração avança para e se aproxima da nossa meta de 27 mil novos mineiros legais nos próximos quatro anos" disse o ministro.
Já no Brasil, um dos acenos mais favoráveis de Bolsonaro ao garimpo ocorreu em 26 de outubro do ano passado, quando ele visitou uma área de garimpo ilegal dentro da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Na ocasião, ele defendeu a atividade. “Esse projeto [de lei 191] não é impositivo. Diz: se vocês quiserem plantar, vão plantar. Se vão [querer] garimpar, vão garimpar”.