Trabalho realizado pelos próprios indígenas no entorno das torres de transmissão garantiu maior proteção à biodiversidade local
A construção do Linhão de Tucuruí atravessa 144 km da Terra Waimiri Atroari e está sendo acompanhada por lideranças indígenas (Foto: Divulgação)
A paisagem ancestral da Terra Indígena Waimiri Atroari, localizada no norte do Amazonas e sul de Roraima, começa a ser atravessada por novos elementos. São quase 2,3 milhões de hectares de floresta densa e de rica biodiversidade. Mas, agora, os indígenas que caminham por seu território também avistam estruturas metálicas de quase 300 metros surgindo no horizonte: são as torres das linhas de transmissão do Linhão de Tucuruí, instaladas ao longo da rodovia federal BR-174.
Com cerca de 64% das obras concluídas até o final do último ano, o consórcio Transnorte Energia, formado pela Alure e Eletronorte, prevê a entrega do projeto para setembro de 2025. Até dezembro de 2024, o consórcio já havia construído 70 das 237 torres previstas dentro do território indígena, sob o olhar atento das lideranças do povo Kinja, como os Waimiri Atroari se autodenominam.
Até dezembro de 2024, o consórcio Transnorte Energia, formado pela Alure e Eletronorte, já havia construído 70 das 237 torres previstas dentro do território indígena
O linhão, que distribui energia gerada pela hidrelétrica de Tucuruí, no Pará, possui 724 km no total e prevê a instalação de 1.390 torres nos estados do Pará, Amazonas e Roraima. O projeto foi leiloado em 2011, mas havia uma série de problemas, como a comunicação insuficiente com os povos indígenas. Em 2022 foi assinado um acordo e a construção seguiu. O projeto busca integrar Roraima, com mais de 700 mil habitantes, ao Sistema Interligado Nacional (SIN), reduzindo a dependência de termelétricas movidas a diesel. De janeiro a agosto do último ano, o estado gastou mais de R$ 324 milhões em combustível (cerca de 53 milhões de dólares) para suas usinas.
Em 2021, Roraima liderou o ranking nacional de emissões de CO2 per capita, com 94 toneladas por habitante - mais de 15 vezes a média mundial, segundo o Observatório do Clima. As principais causas são o uso de diesel nas termelétricas, o desmatamento e a agropecuária, conforme já destacado em reportagem da Climate Tracker. A integração ao SIN visa também fomentar o uso das fontes renováveis de energia solar e eólica, promovendo avanços econômicos e ambientais.
Após uma década de negociações e ações judiciais para garantir seus direitos, o povo kinja autorizou a obra mediante a compensação de R$ 90 milhões
“Além disso, a transição para fontes renováveis, como solar e eólica, exige redes de transmissão mais flexíveis e inteligentes”, acrescenta.
A falta de linhas de transmissão é um desafio para a expansão das energias renováveis no Brasil, particularmente na região Norte e Nordeste. Em 2023, a perda de energia, somente em Boa Vista, foi de 114.593 MWh, o maior índice do Brasil. As perdas são calculadas pela diferença da energia gerada e entregue nas redes de distribuição.
Embora boa parte da energia no Brasil seja gerada no Norte e no Nordeste, cerca de 990 mil pessoas na Amazônia ainda não têm acesso à eletricidade, segundo o Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA). Grande parte dos municípios da região Norte dependem de Sistemas Isolados (SISOL), que operam principalmente com óleo diesel. Essa dependência, além de onerosa, contradiz os esforços globais de transição para uma matriz energética sustentável.
A construção do linhão ajuda a resolver esse problema, mas a obra traz prejuízos ambientais e sociais. A construção atravessa 144 km da Terra Indígena Waimiri Atroari, impactando rotas de caça e coleta. Cada torre requer o desmatamento equivalente a 250 campos de futebol. “Qualquer empreendimento dessa magnitude impacta fortemente o meio ambiente e a realidade sociocultural do povo indígena”, explica Harilson Araújo, representante da Associação Waimiri Atroari (ACWA).
Atuação dos indígenas diminui impacto ambiental da obra
Após uma década de negociações e ações judiciais para garantir seus direitos, o povo kinja autorizou a obra mediante a compensação de R$ 90 milhões (cerca de 14 milhões de dólares americanos) do governo federal e R$ 43 milhões do consórcio (cerca de 7 milhões de dólares), além da implementação rigorosa do Plano Básico Ambiental – Componente Indígena (PBA-CI), critério estabelecido pelas autoridades ambientais brasileiras para o licenciamento da obra. Desde a década de 1970, grandes empreendimentos, como a BR-174, a Usina Hidrelétrica de Balbina e a operação da Mineradora Taboca, adquirida em 2024 por uma empresa estatal chinesa, causaram danos profundos à sobrevivência desse povo, que teve sua população reduzida por causa dos impactos, e hoje conta com pouco mais de 3 mil indígenas.
O Plano Básico Ambiental – Componente Indígena (PBA-CI) identificou 37 impactos socioambientais relacionados à implantação do Linhão na Terra Indígena, dos quais 27 foram considerados irreversíveis e 10 passíveis de mitigação. O Plano prevê a restauração de áreas degradadas, monitoramento ambiental e programas de fortalecimento cultural e educacional para as comunidades indígenas afetadas. Diante do histórico de descumprimentos em projetos semelhantes, Araújo reforça a importância do envolvimento direto dos Kinja. “O cumprimento do PBA-CI tem sido fundamental para mitigar os impactos”, destaca. “Todas as condicionantes são realizadas com consulta prévia e participação direta dos indígenas, assegurando respeito às tradições culturais e à preservação ambiental”, afirma.
De acordo com a ACWA, 460 Kinja participaram ativamente das atividades de fiscalização e monitoramento das obras em 2024. Esses fiscais indígenas registraram mais de 4.500 fichas de inspeção e 1.900 relatórios de monitoramento. Ao todo, 215 áreas tiveram a vegetação suprimida, sendo que 186 delas já possuem a fundação concluída, etapa em que a área da torre está pronta para a instalação dos materiais metálicos.
Graças ao trabalho realizado pelos indígenas no território, conforme estipulado em acordo, foi possível garantir maior proteção à biodiversidade na área do linhão
No âmbito do Programa de Gestão Ambiental Kinja (PGAK), a equipe de fauna resgatou mais de 4.300 animais ao longo do ano, provenientes das áreas de influência das torres. Paralelamente, a equipe de flora, em colaboração com os tahmapa (lideranças tradicionais), coletou mais de 33.000 mudas e realizou o resgate de mais de 26.000 epífitas, entre elas orquídeas, bromélias e cactáceas. Os números refletem a capacidade técnica dos indígenas em intervenções do tipo, graças aos saberes ancestrais sobre seus territórios, além do compromisso deles com a preservação da biodiversidade.
“Até o momento, a participação dos indígenas tem sido determinante para evitar agravamentos e garantir que as medidas sejam implementadas conforme planejado”, pontua Araújo. Ainda assim, a comunidade permanece vigilante quanto à possibilidade de novos impactos ou descumprimento das condicionantes, reafirmando sua posição como guardiã ativa do território.
Expansão das linhas deve acompanhar crescimento da demanda
A expansão das linhas de transmissão deve acompanhar o crescimento da demanda e da produção de energia elétrica, que em Roraima teve um crescimento de 7,26%, em 2022, a fim de evitar falhas no fornecimento, como apagões. Esses problemas, frequentemente resultantes de gargalos na infraestrutura, ocorrem quando a eletricidade gerada em locais distantes não pode ser aproveitada devido à ausência de redes que conectem essas áreas ao sistema de distribuição. Nesse contexto, Macêdo reforça a importância de um planejamento integrado: “É essencial garantir que a capacidade de transmissão acompanhe o crescimento da geração, especialmente em regiões remotas que dependem dessa infraestrutura para viabilizar o aproveitamento de fontes renováveis.”
Na opinião da especialista, para além das necessidades imediatas, as linhas de transmissão desempenham um papel estratégico no avanço tecnológico que a Amazônia busca, com o desenvolvimento da bioeconomia. O linhão irá permitir a conexão de Roraima e o Amazonas com uma maior oferta de cabos de internet, no modelo fibra óptica, permitindo o desenvolvimento de tecnologias e aumento de velocidade de conexão.
Sobre as obras do Linhão, o Ministério de Minas e Energia (MME) anunciou que, apesar da previsão oficial da concessionária, já considera um novo atraso, com a conclusão do projeto estimada para 30 de dezembro de 2025. A Transnorte Energia, por outro lado, afirma que trabalha para cumprir o prazo de entrega, e que as garantias de compensação estão sendo aprovadas pelos indígenas Kinja.
Ministério de Minas e Energia anunciou que pode haver novo atraso nas obras do linhão, com a conclusão do projeto estimada para o final deste
De acordo com a Associação Amazonense de Energia Solar Fotovoltaica - Amesolar, o setor solar projeta um investimento de R$ 39 bilhões (cerca de 6 bilhões de dólares) em 2025, com a previsão de destinar R$ 200 milhões (cerca de 33 milhões de dólares) exclusivamente ao interior do Estado do Amazonas, abrangendo cidades e comunidades isoladas.
“Em parceria com o Governo do Estado do Amazonas, a Amesolar planeja ampliar a geração de energia solar no interior do Amazonas através de projetos de pequeno e médio porte conectados à rede, sendo assim essas redes de transmissão e distribuição precisam ter capacidade de transporte senão todo o esforço será em vão”, afirma Helane Souza, presidente da Amesolar e vice-presidente de relações institucionais da Associação Nacional das Entidades Representativas de Energias Renováveis (ANER).
Enquanto isso, os Kinja trabalham para que os erros históricos de empreendimentos conduzidos em seu território não se repitam. “A obra está funcionando como uma grande escola para os Kinja e os kaminja (não indígenas) trocarem conhecimentos e experiências. O CGAK (Centro de Gestão Ambiental Kinja) se tornou um espaço de formação para inspetores, monitores, coordenadores, supervisores e gestores, capacitando os Kinja para atuar em diferentes áreas do projeto”, afirma a ACWA, em seu boletim informativo mais recente.
Esta reportagem foi produzida com o apoio da bolsa de jornalismo Climate Tracker América Latina.