Doutor em meteorologia e cocriador do aplicativo Selva diz que expectativa de vida na região Norte já é menor em um ano e que fumaça de queimadas ainda tem danos não observados
Doutor em meteorologia, Rodrigo Souza, disse que o problema das queimadas que polui o ar deve ser enfrentado de maneira conjunta por todas as esferas do poder público e da sociedade (Foto: Paulo Bindá)
Doutor em meteorologia e cocriador do Sistema Eletrônico de Vigilância Ambiental Selva), o físico Rodrigo Souza avalia que os danos ocasionados pela fumaça de queimadas que encobre a Amazônia ainda não se mostraram na totalidade.
Segundo ele, já há estudos que apontam a redução da expectativa de vida na região Norte do país, o que reforça a importância de a população entender a gravidade do problema. Para o docente da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), as ações não devem partir só dos governos, mas da própria população. Confira a entrevista.
Como surgiu o Selva, hoje utilizado como referência pela população para acompanhar a qualidade do ar no estado?
O Selva faz parte de um projeto de extensão da UEA, o EducAIR, Educação Ambiental em Qualidade do Ar, com foco nas queimadas e na poluição decorrente das queimadas. Esse foi um projeto que se iniciou na UEA, em parceria com uma fundação estrangeira, que se chama Fundação Cuomo, e uma parceria também com a Fundação de Apoio da UEA, Fundação Universitas de Estudos Amazônicos, e fizemos esse acordo de cooperação tripartite para iniciarmos o projeto de extensão chamado EducAIR. Esse projeto visava atingir os alunos da rede pública do estado nessa componente de estudos na área ambiental e como fazer isso de uma maneira atrativa para os jovens.
A forma que a gente encontrou de fazer isso foi com o uso de tecnologia. Hoje se fala muito de internet das coisas, e o Selva, de certa forma, é um capítulo de internet das coisas com foco na natureza, no ambiente, o que a gente também pode chamar de internet da natureza.
O Selva se resume a uma ferramenta de trabalho do/ projeto EducAIR, uma ferramenta de educação ambiental. E aí, é claro que além de trazer essa pegada de uma ferramenta educativa, ele também presta um serviço de utilidade pública para a população. E a gente fica muito feliz que a população tenha feito uso dessa ferramenta no dia a dia, até porque esse é um caminho para a gente popularizar a ciência e trazer para a pauta do dia esse tema tão importante que é a qualidade do ar, principalmente em tempos de seca severa, eventos extremos, mudanças climáticas.
O Selva, de fato, virou uma referência. Pensando nisso, e ressaltando que é uma plataforma que surge na UEA, vocês já foram procurados pela Secretaria de Meio Ambiente e Ipaam para que os dados da plataforma possam ajudar na atuação, no combate às chamas, por exemplo?
A UEA é estado, a SEMA é estado, o Ministério Público é estado, e todos estamos juntos nessa frente. O Selva nasce como um projeto de extensão dentro da UEA, mas rapidamente ganha parceiros. A Defesa Civil é parceira, a Seduc é parceira, a Sema é parceira, o Ipaam é parceiro, o Ministério Público é parceiro.
Costumo dizer que essa rede de monitoramento que hoje existe é uma rede solidária de monitoramento. Se a gente for falar em nível de Amazonas, todos esses entes que eu falei são parceiros, mas não temos apenas eles.
Somos, de fato, uma rede colaborativa. O Ministério Público do estado, por exemplo, tem feito um papel maravilhoso de converter multas ambientais em estações de monitoramento de qualidade do ar.
A Sema fez uma parceria de ampliação das ações do combate aos incêndios no interior do estado e ampliou a rede de monitoramento. O Ipaam não é diferente com suas ações. A Seduc vem cedendo os espaços para o ensino de educação ambiental nesse foco, e também o espaço físico para a instalação de sensores em escolas. Somos todos um corpo só.
Novamente a cidade está engolida pela fumaça tóxica. A gente consegue saber de onde ela vem e por que também piorou nos últimos dias?
A poluição não tem nem fronteira nem endereço. Fato é, uma vez que a gente lança na atmosfera toda essa fumaça das queimadas, a meteorologia se encarrega de fazer o transporte. Então, o que acontece é o seguinte: o Brasil vem queimando, não exclusivamente a Amazônia, mas o Brasil vem queimando todas as regiões nos últimos dias, nas últimas semanas.
E a gente está no período seco da nossa região, ou seja, os ventos mais fracos, pouca chuva, fazem com que essa atmosfera fique mais estável, mais parada, mais acomodada, fazendo com que essa pluma de fumaça se disperse lentamente. Então, essa pluma de fumaça já está na atmosfera há dias, semanas, e aí a meteorologia vem lentamente soprando ela em todas as direções. Por conta da frente fria que entrou no Sul, a gente viu o episódio de fumaça em Brasília, por conta do transporte pelos ventos, e esses ventos agora estão soprando do Sul para a nossa região.
Isso faz com que boa parte da fumaça concentrada mais na porção sul do estado e norte do Centro-Oeste chegue a Manaus lentamente. Então, essa fumaça deve persistir por hoje e amanhã também. Muito provavelmente deve-se alongar uns dias por aqui. Enquanto os ventos não retirarem essa fumaça da nossa região, ela vai persistir por aqui, porque a probabilidade de chuva é muito pequena.
A gente vai continuar com essa atmosfera de ventos fracos, mas agora carregada com fumaça. Enquanto esses ventos continuarem vindo do Sul lentamente, eles vão continuar trazendo fumaça para a nossa região. Se você observar no Selva, as concentrações de material particulado em praticamente todas as estações que a Defesa Civil, em parceria com todos os entes, Ipaam e Sema, instalaram no interior do estado, você já vai ver uma concentração muito elevada de material particulado praticamente em todos os municípios que estão cobertos pelos sensores. Isso mostra que o estado inteiro vai ficar praticamente coberto por fumaça nos próximos dias com essa circulação atmosférica de chuva.
(Foto: Paulo Bindá)
Em relação a essas estações, algumas aparecem desativadas por falta de internet. Qual o panorama? Há previsão de retorno?
Se você observar no site do Selva, lá aparecem só as estações que estão online. No aplicativo, a gente tem uma informação a mais. A gente já marcou no aplicativo o local em que serão instaladas as novas estações nos municípios do Amazonas, então, se você observar lá, alguns pontos que estão cinza são os pontos que a Defesa Civil ainda não alcançou. E assim que a Defesa Civil alcançar, esses pontos passam a ser monitorados de forma contínua.
Outros pontos cinzas são aqueles que já estão instalados e eventualmente a internet está fora do ar. Agora, como eu te disse, essa é uma rede solidária de monitoramento, é uma rede colaborativa e nós não temos o total controle sobre a internet de todos os locais.
Eventualmente, quando a estação perde a conectividade, ela fica temporariamente fora do ar, mas assim que a conectividade é restabelecida, ela volta a comunicar e volta a transmitir os dados. Então, vai ser comum, ao longo dos meses, dos anos, algumas estações irem aparecendo e sumindo, porque isso vai ser conforme a conectividade.
O que a gente tem buscado fazer é ampliar a rede de monitoramento de uma forma que fique bastante densa, para que, caso alguma estação não esteja funcionando no momento, uma outra ao lado possa dar suporte.
Você afirmou que o plano é alcançar todos os municípios. Quantos têm estações, hoje, e qual a previsão para completar todo o Amazonas?
A gente está com esse plano de ampliação em curso no momento. Quem pode dar uma resposta mais objetiva sobre a finalização da instalação nos 62 municípios é a Defesa Civil, que está com esse trabalho. O que a UEA fez foi capacitar os colegas da Defesa Civil nesse processo de instalação e configuração da estação e para subir as informações da plataforma. A gente está fazendo isso quase em tempo real.
A instalação acontece no município, ela é conectada à internet e a gente sobe quase automaticamente o dado na plataforma. Agora, esse planejamento, eu tenho certeza que ele é ainda para a estação seca desse ano, mas eu não sei precisar qual é o prazo para a conclusão, porque imprevistos acontecem. A logística não é trivial. A gente sabe que a Defesa Civil está em campo, trabalhando dia e noite em cima disso.
Passamos por isso pelo segundo ano consecutivo. O ideal é que o problema solucionado, mas, pela recorrência, existe algo que pode ser feito de adaptação a essa realidade? Talvez uso de equipamentos de proteção específicos.
Nós estamos com uma demanda urgente de conscientização e mudança de entendimento com relação a esse problema ambiental. Por isso, a nossa preocupação enquanto universidade é atacar pela educação ambiental, porque esse é um problema de todos. Não adianta a gente achar que isso vai ser uma canetada de uma nova lei do governador, do presidente, que vai resolver o problema, porque não vai, porque esses fogos que acontecem no Brasil são criminosos. A gente tem já um decreto do governador com a proibição do fogo, em vários estados os governadores fizeram o mesmo e o fogo continua.
Enquanto a gente não conscientizar a população sobre esse problema ambiental que afeta a saúde de todos, esse problema vai persistir. E esse problema persistindo, não se sabe por quanto tempo, ainda mais acentuado pela questão climática, vai nos forçar a buscar alternativas para respirar um ar mais adequado, porque certamente vai comprometer a saúde de todos.
Talvez as pessoas ainda não tenham amadurecido para o problema de saúde no qual estão inseridas. Hoje de manhã eu levantei, fui levar os filhos na escola, eu moro no passeio do Mindu, e vi várias pessoas de livre e espontânea vontade correndo. Pra mim aquilo é um absurdo.
Você vê pessoas que não são totalmente de escolaridade baixa, correndo no passeio do Mindu, debaixo de um ar péssimo. Ou seja, estão comprometendo a sua saúde pessoal, achando que estão tendo alguma vantagem fazendo uma corrida num ambiente como esse. Estudos têm apontado que a expectativa de vida na nossa região já reduziu em, no mínimo, um ano. A gente está disposto a pagar essa conta da fumaça? E em quantos anos a gente está disposto a entregar a nossa vida para uma qualidade ainda pior do ar na nossa cidade?
(Foto: Paulo Bindá)
O governo federal tem dito que a emergência climática contribui para o aumento das queimadas, porque torna o ambiente mais seco e quente. O senhor concorda com essa visão?
As mudanças climáticas têm o papel de fazer com que os eventos extremos fiquem ainda mais críticos e frequentes. A gente teve, em 2023, essa experiência de seca grande, e ela se repetiu em 2024. Isso não é garantia de que não teremos algo parecido em 2025, ou seja, não estamos livres de ter essa recorrência ano sim, ano não, ou todos os anos. Resta saber o quão dispostos estaremos para isso, porque as mudanças climáticas nos colocarão nessa situação com frequência.
Se a gente não mudar rapidamente a consciência e os mecanismos de regular esses eventos de queimadas no Brasil, que não é um problema de Amazônia, é um problema de Brasil, América do Sul e outras regiões do globo, a gente vai se expor frequentemente.
A gente está em um ano de eleição municipal. Qual é o papel da prefeitura nesse cenário todo? Dá para contribuir de alguma maneira? O que os candidatos podem propor?
Eu não vou entrar no mérito de candidatos, mas a gente precisa entender que o problema ambiental que a gente está vivendo é um problema de resolução colaborativa. A gente tem que envolver a esfera municipal, estadual e a gente precisa envolver a esfera federal para que eles possam, com as ferramentas possíveis que existem, atuarem da melhor forma possível. Mas, ao mesmo tempo, nós não podemos transmitir esse problema só para eles.
A UEA está fazendo o seu papel de capacitar recursos humanos, informais, fazer a popularização da ciência assim como as outras instituições independentes aqui da região estão fazendo. E a sociedade precisa pensar isso como um problema da sociedade, não só de governo. A gente precisa abraçar isso coletivamente.
(Foto: Paulo Bindá)