RELATO HISTÓRICO

Hanseníase: memórias de um período de dor e despedida

A agricultora aposentada Eunice Lunier da Silva, de 94 anos, relembrou o período de medo e incertezas com o aumento dos casos de hanseníase´no Amazonas, nos idos de 1940 e 1950. Hoje, a doença tem tratamento e cura, mas nem sempre foi assim…

Jhonny Lima
cidades@acritica.com
30/01/2023 às 13:24.
Atualizado em 30/01/2023 às 13:28

Ao A CRÍTICA, dona Eunice relata muitas histórias contadas pelo marido, quando pilotava o batelão com rebocador carregado de doentes, onde muitos deles não retornaram mais para suas famílias, pois o avançado estado da doença tinha tomado conta do corpo (Foto: Luciana Silva Oliveira)

A lembrança da dor e o desespero das pessoas ainda são vivos na memória da agricultora aposentada Eunice Lunier da Silva, 94 anos, ao relembrar de um período de medo e incertezas com o aumento dos casos de hanseníase no Amazonas, nos idos de 1940 e 1950. Hoje, com a ciência avançada, a doença tem tratamento e cura, mas nem sempre foi assim…

Ainda adolescente, aos 14 anos, ela se casou com Antônio Pereira da Silva, na época, soldado da borracha, que com o declínio da extração do período áureo da produto, passou a pilotar um batelão e transportar mercadorias para o município de Cruzeiro do Sul, no Acre. 

Filhos de Eirunepé, ele a esposa tiveram que mudar a rotina quando chegou no município agentes de saúde vindos da capital Manaus na busca ativa por doentes e para levá-los para tratamento médico no então leprosário situado na Vila de Paricatuba na época, ainda pertencente a Manaus (hoje Iranduba). 

Um dos pavilhões do leprosário em Paricatuba, local onde iam os hansenianos levados pelo seu Antônio, à época esposo de dona Eunice (Fonte: Fonte: Sociedade Amazonense de Proteção aos Lázaros. Um ano de trabalho patriótico. 1932. p. 13.)

O prédio, referência na época para tratamento de hanseníase, ainda foi a Hospedaria dos Imigrantes (1890), na época áurea da borracha; anos mais tarde, passou a receber filhos de indígenas para que pudessem estudar (1905 a 1907) e, posteriormente, a Escola de Ofícios, com o objetivo de ensinar crianças pobres, e até como casa de detenção, antes de ser reformada para atender os hansenianos, em 1931.

Ainda hoje, dona Eunice lembra daquele período e dos contos relatados pelo marido. “Ele foi  fazer uma viagem pelo rio Juruá, de Eirunepé até Cruzeiro do Sul, e na volta, vinha buscando as pessoas doentes com hanseníase. Chegava nas casas, esperava as pessoas se arrumarem, acompanhados pela junta médica de Manaus”, conta.

A agricultora relata muitas histórias contadas pelo marido, quando pilotava o batelão com rebocador carregado de doentes, onde muitos deles não retornaram mais para suas famílias, pois o avançado estado da doença tinha tomado conta do corpo, 

Emocionada em vários momentos da entrevista, ela relata que antes mesmo da junta médica chegar às comunidades do Amazonas, a família dos doentes os enviavam, sozinhos, para a capital à procura de tratamento.

A lembrança dos difíceis tempos dos leprosários fez com que dona Eunice se emocionasse diversas vezes durante a entrevista ao A CRÍTICA (Foto: Luciana Silva Oliveira)

“Na antiguidade não tinha isso, porque era muito difícil. Quando aparecia alguém doente na família, eles mesmo pegavam a canoa, colocavam a mulher ou o rapaz, aquele senhor casado, se despedia da família e iam embora. E aqui e acolá eles paravam nos barracões de seringal para pedir comida. E os seringalistas arrumavam o rancho e davam para eles seguirem viagem até Manaus atrás de tratamento médico”.

A hanseníase, ou lepra como era chamada, acomete pessoas de todas as idades. Com muito pesar, dona Eunice lembra de casos dolorosos que viu e ouviu do marido.

Eram pessoas de todas as idades, crianças, senhor,  sem nenhum dedo. Só tinha isso aqui da mão (apontando para a palma), outros não andavam mais. Muita gente jovem. Meu marido conta que era a coisa mais triste que viu na vida. Depois que ele deixava os doentes em Manaus eu não tinha mais notícias porque ele retornava para Eirunepé para levar mais pessoas doentes”, conta emocionada.

História contada de avô para neta

A professora Luciana Silva de Oliveira, 38, relata alguns momentos que o avô Antônio Pereira da Silva contava durante o período que transportava os hansenianos para a Vila de Paricatuba. E ele ‘estalo’ se deu quando ela visitou pela primeira vezes, em 2022, o prédio em ruínas. 

Lá, ela se deparou com um lugar recheado de história e que a fez lembrar dos momentos relatados pelo avô, nas idas e vindas transportando doentes até o local, hoje declarado patrimônio histórico, cultural e imaterial do Amazonas.

Luciana Silva de Oliveira, 38, é neta de Antônio Pereira da Silva. Junto da avó, dona Eunice, a professora relatou histórias que ouvia do avô durante o tempo em que ele realizava o transporte dos hansenianos para o leprosário (Foto: Luciana Silva de Oliveira)

“Uma das histórias do vovô, ele conta que era tanto desespero desses doentes para não irem para o leprosário que muitos pulavam da embarcação. Era nessa hora que eu via mais emoção no rosto dele. Era muita dor, física e na alma dos doentes”.

Professora concursada no município de Rio Preto da Eva (distante 79 quilômetros de Manaus), Luciana acrescenta que a histórias contadas pelo avô (falecido aos 74 anos de idade) aconteciam geralmente à noite e, na época criança, ela procurava imaginar os acontecimentos. Com o passar dos anos, ela foi compreender e imaginar a dor das pessoas ao deixar as famílias e nunca mais retornar.

“Ele contava pra gente que tinha uma moça de uns 15 anos. Ela chorava muito e ele dizia: ‘Minha filha, isso me doeu tanto, moça tão jovem e indo para lá (Manaus) para morrer’, porque não tinha cura. Quando fui crescendo e entendendo o peso da história, fui perceber o sentimento. Ele conta que, quando o barco ia atracando nos portos, as pessoas fugiam para dentro da mata porque sabiam que iriam se afastar de suas famílias. Passavam dias escondidos pois sabiam que se fossem para esse local eles não iriam ver mais seus parentes. Eram mães, pais, deixando seus filhos. Filhos deixando seus pais. A gente olha para nossa realidade hoje, e passou tanto tempo para que as pessoas não morressem mais, é tão maravilhoso ver quando evoluímos”, finalizou.

Casos de hanseníase voltam a crescer no Amazonas

De acordo com a Fundação Hospitalar Alfredo da Matta (Fuham), em 2022, foram detectados no Estado do Amazonas 338 casos novos de Hanseníase. Do total, 113 (33,4%) eram residentes de Manaus e 225 (66,6%) residentes em outros 47 municípios. Na faixa etária de maiores de 15 anos foram detectados 302 (89,3%) casos e 36 em menores de 15 anos (10,7%).

Os números de casos registrados vêm crescendo nos últimos anos na capital, conforme dados divulgados pela Secretaria Municipal de Saúde (Semsa). Em 2021 foram 102 casos e no ano de 2020 foram registrados 72 novos casos de hanseníase. 

A hanseníase

É uma doença crônica, causada pela bactéria Mycobacterium leprae, que pode afetar qualquer pessoa. Caracteriza-se por alteração, diminuição ou perda da sensibilidade térmica, dolorosa, tátil e força muscular, principalmente em mãos, braços, pés, pernas e olhos e pode gerar incapacidades permanentes. Conforme os médicos, diagnosticar cedo é o elemento mais importante para evitar transmissão, complicações e deficiências.

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